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NINA HORTA
A comida como meio de interação
A cozinha e a comida são os melhores modos de nos conectarmos ao mundo. Por meio delas, abrimos as portas
"ESTRELAS NO Céu da Boca",
escritos sobre culinária e
gastronomia de Carlos Alberto Dória. O título do livro é bonito, até estala na língua.
"Por mais longe que se possa remontar, o valor gastronômico prevalece sobre o valor alimentar, e foi na
alegria, não na penúria, que o homem encontrou seu espírito. A conquista do supérfluo produz uma excitação espiritual maior que a conquista do necessário." Gaston Bachelard.
Ao pensarmos sobre a culinária-manual-de-receitas e sobre a gastronomia, estamos tentando compreender como nos relacionamos
com o mundo à nossa volta, tentando nos individualizar, saber do que
gostamos ou não gostamos, quanto
somos iguais aos nossos vizinhos,
quanto somos diferentes.
E a comida é o maior incentivo de
interação. (Amanse o taxista enfezado, em Manaus, falando sobre farinhas.) A cozinha e a comida são os
melhores modos de nos conectarmos ao mundo exterior e, por meio
delas, vamos abrindo as portas, saindo do útero, largando o peito da mãe
para passear nos restaurantes.
O autor nos oferece três vias de reflexão para que possamos entender
bem os seus textos, muitos já publicados no Trópico (www.uol.com.com.br/tropico) e outros inéditos.
Primeiro: a compreensão de heranças e tradições (o que vem acontecendo conosco através dos tempos em matéria de comida. Até no
espaço de tempo de uma vida, temos o McDonald's, a primeira cantina, a pizza, o estrogonofe, o peru a
Califórnia, a salada Waldorf, a comida da fazenda, o churrasquinho
de gato, o restaurante por quilo).
Segundo: qual a história desta comilança? (o que foi a cozinha nova?
O que é terroir? Quem foi Escoffier,
Carême? E a técnica culinária,
quem a tem mais afiada? Franceses? Espanhóis?) Terceiro: como
pensar o futuro, nossas apostas (ao
que chegaremos? Tudo em lata, ou
tudo orgânico? Fast ou slow-food?
Comer em casa ou fora de casa? E
sobre as novidades brasileiras, o
que é engodo, o que é pesquisa séria? Quais são os gostos e os desgostos brasileiros? Um estudo do gosto. O peso do status social, as primeiras experiências e um capítulo
fornido sobre a educação do paladar, a experiência dos sentidos).
Comemos e falamos sobre comida. Não só os entendidos e críticos,
mas a cozinheira da casa, a mãe,
preparando o jantar do dia, todos
reunidos em volta do bacalhau, está
um pouco mais salgado, eu prefiro
as batatas, não gosto do tomate inteiro... A mãe fez a comida, outros
conversam sobre ela. A comida tem
seu discurso prático, domínio do
cozinheiro e o discurso da palavra
(o discurso chamado de tagarela,
por Revel), cozinha faladeira, altamente subjetiva, ligada ao gosto de
cada um, comida de espírito. E os
dois discursos se entrelaçam.
Existem os críticos culinários
que podem dizer que acharam isto
melhor do que aquilo e aquilo melhor do que isto, comparando seus
gostos, mas a última escolha é nossa e está calcada irremediavelmente sobre nossa história de vida. E o
bonito da coisa é que a síntese final
vem desse encontro do cozinheiro,
do crítico e do comedor, misturando terreiros, ingredientes, técnicas, aceitando e rejeitando novidades, formando e transformando o
gosto.
O autor acha que o Brasil ainda
engatinha neste pensar reflexivo
sobre o que se come, e os motivos
para isso são muitos, que ele vai
dissecar, deixando só os ossinhos,
como um gato comilão. E por mais
que eu reclame da linguagem, o autor diz que quem pensa bem, escreve bem assim. Acho que é verdade,
mas já vou avisando que a leitura
de certos capítulos não é como comer uma musse de maracujá. (Só o
primeiro ensaio, "Cinco Estrelas e
uma Só Noite", o melhor deles,
uma história pessoal.) Os outros
são bons bifes grossos, e é preciso
mastigar bem cada garfada, de olho
parado, pensando.
ninahorta@uol.com.br
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