São Paulo, quinta-feira, 07 de setembro de 2006

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NINA HORTA

A comida como meio de interação

A cozinha e a comida são os melhores modos de nos conectarmos ao mundo. Por meio delas, abrimos as portas

"ESTRELAS NO Céu da Boca", escritos sobre culinária e gastronomia de Carlos Alberto Dória. O título do livro é bonito, até estala na língua.
"Por mais longe que se possa remontar, o valor gastronômico prevalece sobre o valor alimentar, e foi na alegria, não na penúria, que o homem encontrou seu espírito. A conquista do supérfluo produz uma excitação espiritual maior que a conquista do necessário." Gaston Bachelard.
Ao pensarmos sobre a culinária-manual-de-receitas e sobre a gastronomia, estamos tentando compreender como nos relacionamos com o mundo à nossa volta, tentando nos individualizar, saber do que gostamos ou não gostamos, quanto somos iguais aos nossos vizinhos, quanto somos diferentes.
E a comida é o maior incentivo de interação. (Amanse o taxista enfezado, em Manaus, falando sobre farinhas.) A cozinha e a comida são os melhores modos de nos conectarmos ao mundo exterior e, por meio delas, vamos abrindo as portas, saindo do útero, largando o peito da mãe para passear nos restaurantes.
O autor nos oferece três vias de reflexão para que possamos entender bem os seus textos, muitos já publicados no Trópico (www.uol.com.com.br/tropico) e outros inéditos.
Primeiro: a compreensão de heranças e tradições (o que vem acontecendo conosco através dos tempos em matéria de comida. Até no espaço de tempo de uma vida, temos o McDonald's, a primeira cantina, a pizza, o estrogonofe, o peru a Califórnia, a salada Waldorf, a comida da fazenda, o churrasquinho de gato, o restaurante por quilo).
Segundo: qual a história desta comilança? (o que foi a cozinha nova? O que é terroir? Quem foi Escoffier, Carême? E a técnica culinária, quem a tem mais afiada? Franceses? Espanhóis?) Terceiro: como pensar o futuro, nossas apostas (ao que chegaremos? Tudo em lata, ou tudo orgânico? Fast ou slow-food?
Comer em casa ou fora de casa? E sobre as novidades brasileiras, o que é engodo, o que é pesquisa séria? Quais são os gostos e os desgostos brasileiros? Um estudo do gosto. O peso do status social, as primeiras experiências e um capítulo fornido sobre a educação do paladar, a experiência dos sentidos).
Comemos e falamos sobre comida. Não só os entendidos e críticos, mas a cozinheira da casa, a mãe, preparando o jantar do dia, todos reunidos em volta do bacalhau, está um pouco mais salgado, eu prefiro as batatas, não gosto do tomate inteiro... A mãe fez a comida, outros conversam sobre ela. A comida tem seu discurso prático, domínio do cozinheiro e o discurso da palavra (o discurso chamado de tagarela, por Revel), cozinha faladeira, altamente subjetiva, ligada ao gosto de cada um, comida de espírito. E os dois discursos se entrelaçam.
Existem os críticos culinários que podem dizer que acharam isto melhor do que aquilo e aquilo melhor do que isto, comparando seus gostos, mas a última escolha é nossa e está calcada irremediavelmente sobre nossa história de vida. E o bonito da coisa é que a síntese final vem desse encontro do cozinheiro, do crítico e do comedor, misturando terreiros, ingredientes, técnicas, aceitando e rejeitando novidades, formando e transformando o gosto.
O autor acha que o Brasil ainda engatinha neste pensar reflexivo sobre o que se come, e os motivos para isso são muitos, que ele vai dissecar, deixando só os ossinhos, como um gato comilão. E por mais que eu reclame da linguagem, o autor diz que quem pensa bem, escreve bem assim. Acho que é verdade, mas já vou avisando que a leitura de certos capítulos não é como comer uma musse de maracujá. (Só o primeiro ensaio, "Cinco Estrelas e uma Só Noite", o melhor deles, uma história pessoal.) Os outros são bons bifes grossos, e é preciso mastigar bem cada garfada, de olho parado, pensando.


ninahorta@uol.com.br

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