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GASTRONOMIA
Bacalhau da Noruega é baiano
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
Fomos jurados de um concurso, O Bacalhau de Ouro.
Para mim, o que poderia haver de
melhor. Adoro bacalhau, fui criada com ele, com a receita de minha avó de uma bacalhoada à espanhola. De que modo o peixe e o
prato teriam emigrado para uma
cidadezinha perdida no interior
de Minas nos 1900 é, para mim,
mais intrigante do que toda a saga
do peixe através dos tempos.
Os cozinheiros inscritos e selecionados vieram de seis Estados
do Brasil. Recife, Rio de Janeiro,
Salvador, Brasília, São Paulo e Belo Horizonte, e o prêmio é ir a
Lyon, assistir ao Bocuse d'Or, a
olimpíada da comida, ombrear
com os melhores cozinheiros do
mundo, descobrir as novas técnicas.
Bem, os papéis dos releases dizem que, no ano passado, comemos 14 mil toneladas de peixe e,
neste ano, apenas 12 mil. O ministro norueguês de Pesca acha pouco, ah, este dólar vem mexer até
com o bacalhau da Noruega, e o
vice-cônsul, simpático e eficiente,
promove campanhas. Onde mais?
No Brasil, que ama o peixe e vai
sentir falta dele se não puder comprá-lo, se não puder comê-lo nos
restaurantes do cais do Rio 40
graus, nas casas especializadas de
São Paulo, o prato quente e o vinho, os guardanapos ao pescoço,
o bom suor, não dá para se esquecer do costume mesmo que aperte o bolso. E o fim do ano está aí e
faltam 2.000 toneladas de bacalhau para comermos e empatar
com o ano passado! Vinte mil quilos não é tanto. Faremos o esforço
que nos cabe pelo bacalhau!!!
Sentamo-nos em ferradura, de
frente para a cozinha, na sala fresca da escola do Laurent Suaudeau, pois é ele que está organizando tudo com sua marca de
coisa bem-feita e cheia de credibilidade. Há um certo ritual todo
feito de sussurros , apreensões, os
participantes muito bem uniformizados, gestos econômicos
-afinal, estão diante de especialistas, de homens que entendem
de vinho, de jornalistas, de empresários, de professores. É um
exame, é uma defesa de tese, é um
desfile de escola de samba. Sabem
que estão sendo avaliados em todos os quesitos, inclusive o de originalidade, e pretendem ganhar.
O júri espera e escuta, o vice-cônsul da Noruega explica os trâmites, esboça-se uma discussão
política entre dois jurados portugueses sobre as virtudes da terrinha, é a fome, é a fome, enquanto
o bacalhau norueguês não nada
até nós. Mas que peixe! Vem do
frio, das ondas altas e de cristas espumantes, rochas dentadas, e
agrada aos paladares de quem?
Dos portugueses, dos brasileiros,
dos africanos, dos italianos e dos
espanhóis, que se deleitam em pegar aquela tábua dura e salgada e
transformá-la em sol mediterrâneo, untuosa, ou radicalizam,
misturando ao coco e ao dendê,
tropicalizam-na sem medo de serem felizes.
Regalamo-nos com as receitas e
seus nomes. Pensamos nas ilhas
de Lofotan, no norte da Noruega,
aonde em 1432 chegou um bote
de sobreviventes de um naufrágio. Eram italianos e, mesmo salvos, estranharam o pedaço de terra onde foram parar, com o peixe
secando na areia, as mulheres
desnudas. "Estamos "in culo
mundi"...", suspeitaram. E levaram o costume para a Itália.
Um dos cozinheiros participantes é mais adepto da nouvelle cuisine que o próprio Bocuse e esbalda-se. "Baccalà in bagno di ólio di
zafferano al Marsala, ritorna a Aalesund." Uma receita com fumet
de crustáceos e lagosta e leva consigo instruções precisas para a
apresentação. "Decore o prato
oval: inicie por um dos extremos
do prato. Pegue o saco de confeitar e desenhe as geleiras de Aalesund, de onde o barco saiu para a
pesca do bacalhau e está retornando. Na outra extremidade, desenhe a rede de arrasto de pesca
do bacalhau, sem as cordas." Fico
de olho parado pensando no que
quer dizer ele com "sem as cordas". Só podia ser mineiro, o barroco à flor da pele.
Bem, para resumir, nunca se fez
tanto jus ao bom peixe, e quem
acabou ganhando foi Osório Valente, baiano de boa conversa que
vai ter o que contar para o resto de
sua vida, no seu restaurante que
leva o mesmo nome da receita, O
Bacalhau do Martelo, em Salvador. Em termos de escola de samba, ganhou Mangueira, a maior
originalidade foi não tê-la e ser
perfeitamente clássico no desfile e
nas alegorias. Simples. Postas de
bacalhau grosso, grelhadas, cobertas de cebolas em rodelas, refogadas e, por cima, na hora, um
molhinho vinagrete da pá virada
que cortava o azeite. Batatas cozidas e brócolis. Tudo na perfeição.
Parabéns, Osório, quem diria,
um baiano interpretando tão bem
o bacalhau norueguês. Pé na estrada, vai lá, vai lá, ensinar ao Bocuse umas coisinhas.
E-mail: ninahort@uol.com.br
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