São Paulo, quinta-feira, 07 de novembro de 2002

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GASTRONOMIA

Bacalhau da Noruega é baiano

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

Fomos jurados de um concurso, O Bacalhau de Ouro. Para mim, o que poderia haver de melhor. Adoro bacalhau, fui criada com ele, com a receita de minha avó de uma bacalhoada à espanhola. De que modo o peixe e o prato teriam emigrado para uma cidadezinha perdida no interior de Minas nos 1900 é, para mim, mais intrigante do que toda a saga do peixe através dos tempos.
Os cozinheiros inscritos e selecionados vieram de seis Estados do Brasil. Recife, Rio de Janeiro, Salvador, Brasília, São Paulo e Belo Horizonte, e o prêmio é ir a Lyon, assistir ao Bocuse d'Or, a olimpíada da comida, ombrear com os melhores cozinheiros do mundo, descobrir as novas técnicas.
Bem, os papéis dos releases dizem que, no ano passado, comemos 14 mil toneladas de peixe e, neste ano, apenas 12 mil. O ministro norueguês de Pesca acha pouco, ah, este dólar vem mexer até com o bacalhau da Noruega, e o vice-cônsul, simpático e eficiente, promove campanhas. Onde mais? No Brasil, que ama o peixe e vai sentir falta dele se não puder comprá-lo, se não puder comê-lo nos restaurantes do cais do Rio 40 graus, nas casas especializadas de São Paulo, o prato quente e o vinho, os guardanapos ao pescoço, o bom suor, não dá para se esquecer do costume mesmo que aperte o bolso. E o fim do ano está aí e faltam 2.000 toneladas de bacalhau para comermos e empatar com o ano passado! Vinte mil quilos não é tanto. Faremos o esforço que nos cabe pelo bacalhau!!!
Sentamo-nos em ferradura, de frente para a cozinha, na sala fresca da escola do Laurent Suaudeau, pois é ele que está organizando tudo com sua marca de coisa bem-feita e cheia de credibilidade. Há um certo ritual todo feito de sussurros , apreensões, os participantes muito bem uniformizados, gestos econômicos -afinal, estão diante de especialistas, de homens que entendem de vinho, de jornalistas, de empresários, de professores. É um exame, é uma defesa de tese, é um desfile de escola de samba. Sabem que estão sendo avaliados em todos os quesitos, inclusive o de originalidade, e pretendem ganhar.
O júri espera e escuta, o vice-cônsul da Noruega explica os trâmites, esboça-se uma discussão política entre dois jurados portugueses sobre as virtudes da terrinha, é a fome, é a fome, enquanto o bacalhau norueguês não nada até nós. Mas que peixe! Vem do frio, das ondas altas e de cristas espumantes, rochas dentadas, e agrada aos paladares de quem? Dos portugueses, dos brasileiros, dos africanos, dos italianos e dos espanhóis, que se deleitam em pegar aquela tábua dura e salgada e transformá-la em sol mediterrâneo, untuosa, ou radicalizam, misturando ao coco e ao dendê, tropicalizam-na sem medo de serem felizes.
Regalamo-nos com as receitas e seus nomes. Pensamos nas ilhas de Lofotan, no norte da Noruega, aonde em 1432 chegou um bote de sobreviventes de um naufrágio. Eram italianos e, mesmo salvos, estranharam o pedaço de terra onde foram parar, com o peixe secando na areia, as mulheres desnudas. "Estamos "in culo mundi"...", suspeitaram. E levaram o costume para a Itália.
Um dos cozinheiros participantes é mais adepto da nouvelle cuisine que o próprio Bocuse e esbalda-se. "Baccalà in bagno di ólio di zafferano al Marsala, ritorna a Aalesund." Uma receita com fumet de crustáceos e lagosta e leva consigo instruções precisas para a apresentação. "Decore o prato oval: inicie por um dos extremos do prato. Pegue o saco de confeitar e desenhe as geleiras de Aalesund, de onde o barco saiu para a pesca do bacalhau e está retornando. Na outra extremidade, desenhe a rede de arrasto de pesca do bacalhau, sem as cordas." Fico de olho parado pensando no que quer dizer ele com "sem as cordas". Só podia ser mineiro, o barroco à flor da pele.
Bem, para resumir, nunca se fez tanto jus ao bom peixe, e quem acabou ganhando foi Osório Valente, baiano de boa conversa que vai ter o que contar para o resto de sua vida, no seu restaurante que leva o mesmo nome da receita, O Bacalhau do Martelo, em Salvador. Em termos de escola de samba, ganhou Mangueira, a maior originalidade foi não tê-la e ser perfeitamente clássico no desfile e nas alegorias. Simples. Postas de bacalhau grosso, grelhadas, cobertas de cebolas em rodelas, refogadas e, por cima, na hora, um molhinho vinagrete da pá virada que cortava o azeite. Batatas cozidas e brócolis. Tudo na perfeição.
Parabéns, Osório, quem diria, um baiano interpretando tão bem o bacalhau norueguês. Pé na estrada, vai lá, vai lá, ensinar ao Bocuse umas coisinhas.

E-mail: ninahort@uol.com.br

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