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São Paulo, sexta-feira, 07 de novembro de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

Noções, lições e emoções de Ary Barroso (1)

Julinho era um garoto que sabia coisas, lá pela minha infância, numa rua qualquer da Tijuca. Um dia íamos lado a lado quando cruzamos com outro guri, já nem sei mais por que nosso inimigo. Era um guri gorducho, balofo, dois óculos indecentes na cara. Julinho deixou que o guri passasse e gritou:
-Ary Barroso! Ary Barroso!
Corremos para fugir da pedrada. Depois perguntei o que era aquilo. Nunca tinha ouvido aquele nome e o tom com que Julinho o dissera parecia ofensivo. A explicação foi grave e incompreensível:
-Quem usa óculos é Ary Barroso!
Essa a primeira noção do Ary.
 
Pouco mais tarde, ainda na infância, fui ao armarinho do seu Coelho comprar qualquer coisa. Presenciei o drama: um outro menino queria comprar uma gaita, dava duro para ser entendido pelo dono da loja. Seu Coelho trouxe gaitas de vários tamanhos, feitios e práticas, mas o guri recusava todas. Até que, em desespero, seu Coelho trouxe uma gaitinha, a mais ordinária, talvez, de sua loja.
-É essa?
O guri agarrou-se com aquilo:
-É, sim, senhor.
-Mas isso é uma gaita do Ary Barroso!
Segunda noção do Ary: a gaita.
 
O pai -ainda por essa época- gostava de óperas, aliás, sempre gostou. Depois perdeu a mania, mas naquele tempo aturávamos, eu e a família inteira, uns programas abjetos na base do Gigli e da Claudia Muzzio. Com o pai em casa, o rádio destinava-se a coisas e misteres nobres: óperas, sermões do Mons. Henrique Magalhães e ginástica pela manhã, que todos fazíamos, para sermos belos e úteis à pátria.
Um dia, o pai adormeceu na varanda. O rádio tocava, havia horas, uma complicada e sonolenta ópera de Wagner e, embora ele não admitisse, gostava mesmo era da "Tosca", da "Butterfly", do Puccini de cabo a rabo. Certo de que o pai estava dormindo, fui ao rádio, um Pilot de seis válvulas, e mudei de estação.
A música sensual e redonda envolveu tudo, despertando súbita vontade de também tocar piano. Quando Carmem Miranda e Luís Barbosa começaram a cantar, olhei para o pai, ver se continuava dormindo. Estava acordado.
Rápido, mudei de estação, à cata dos soturnos berros do Lohengrin. Girei o botão de cá para lá, procurando o Wagner perdido, quando o pai disse uma coisa espantosa:
-Deixa, meu filho, deixa aí mesmo.
-Mas é um samba, pai! Você não gosta!
-É "No Tabuleiro da Baiana", filho. É música da boa, é do Ary Barroso.
Terceira noção: "No Tabuleiro da Baiana".
A criança se fez homem e ganhou um amigo. Muita coisa se passou de lá pra cá. Um dia, esse amigo morreu. E o adulto escuro de hoje, por fidelidade a um garoto, sentiu que, de repente, o mundo era menos mundo, as coisas eram menos coisas.
 
Todo garoto que usava óculos era Ary Barroso. O som da gaita na hora do gol era também Ary Barroso. "Se eu pedir, você me dá, o seu coração, o seu amor de yayá" era ainda Ary Barroso. Mas não era tudo, o todo que se chamava Ary Evangelista Resende Barroso, natural de Ubá, Minas Gerais, nascido em novembro de 1903, doutor em direito, locutor esportivo, vereador, pianista de cinema mudo, autor de revistas nos teatros da praça Tiradentes, torcedor do Flamengo e, sobretudo, o maior compositor brasileiro de sua época e, segundo muitos, o maior de todos os tempos.
Discute-se se a música brasileira mais tocada no mundo é "Aquarela do Brasil" ou "Garota de Ipanema". Desmentindo a crítica oficial, a música mais tocada, que figura entre as cem mais executadas do repertório internacional, é o samba-enredo do Ary, que alguns classificam de "samba de exaltação", quando, na realidade, é o ponto de partida, o embrião dos sambas que cantam um enredo durante o Carnaval.
Não tem primeira nem segunda parte. Não tem introdução, e devemos lembrar que Ary escreveu algumas das melhores introduções do nosso cancioneiro popular. Basta lembrar que uma orquestra sinfônica internacional, a de Andrée Kostelanetz, gravou em disco de 12 polegadas, em arranjos caprichados, a introdução de "No Tabuleiro da Baiana".
Sua música mais famosa, não exatamente a melhor, é uma sucessão de quadros, pinceladas de uma aquarela que, até hoje, nos identifica como povo. São poucos os que lá fora conhecem o Hino Nacional brasileiro. "Garota de Ipanema" tem duas partes fragmentadas, uma tem a ver com o Brasil, a outra podia ter sido feita no Japão, na Croácia, nas Ilhas Papuias. É música de festival, de elevador, vinheta sonora que serve para qualquer coisa que não seja exclusivamente o Brasil
Já a "Aquarela" só tem sentido quando o clima pede não o festival, mas a festa. É tocada e dançada nos Réveillons dos navios de cruzeiro, nas boates e nas ruas onde se comemora o novo ano. Num filme italiano de 1946, "Sotto il Sole de Roma", quando os americanos entram em Roma para libertar a cidade eterna, os soldados de Mac Clark cantam a "Aquarela" como um apelo ao mundo novo que traria a paz. Quarenta anos depois, num filme inglês de Terry Gilliam, a mesma música, em arranjos da Sinfônica de Londres, é tocada o tempo todo como símbolo de uma vida simples, mas alegre, colorida e livre.


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