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CARLOS HEITOR CONY
Noções, lições e emoções de Ary Barroso (1)
Julinho era um garoto que
sabia coisas, lá pela minha infância, numa rua qualquer da Tijuca. Um dia íamos lado a lado
quando cruzamos com outro guri, já nem sei mais por que nosso
inimigo. Era um guri gorducho,
balofo, dois óculos indecentes na
cara. Julinho deixou que o guri
passasse e gritou:
-Ary Barroso! Ary Barroso!
Corremos para fugir da pedrada. Depois perguntei o que era
aquilo. Nunca tinha ouvido
aquele nome e o tom com que Julinho o dissera parecia ofensivo. A
explicação foi grave e incompreensível:
-Quem usa óculos é Ary Barroso!
Essa a primeira noção do Ary.
Pouco mais tarde, ainda na infância, fui ao armarinho do seu
Coelho comprar qualquer coisa.
Presenciei o drama: um outro
menino queria comprar uma gaita, dava duro para ser entendido
pelo dono da loja. Seu Coelho
trouxe gaitas de vários tamanhos,
feitios e práticas, mas o guri recusava todas. Até que, em desespero, seu Coelho trouxe uma gaitinha, a mais ordinária, talvez, de
sua loja.
-É essa?
O guri agarrou-se com aquilo:
-É, sim, senhor.
-Mas isso é uma gaita do Ary
Barroso!
Segunda noção do Ary: a gaita.
O pai -ainda por essa época-
gostava de óperas, aliás, sempre
gostou. Depois perdeu a mania,
mas naquele tempo aturávamos,
eu e a família inteira, uns programas abjetos na base do Gigli e da
Claudia Muzzio. Com o pai em
casa, o rádio destinava-se a coisas
e misteres nobres: óperas, sermões
do Mons. Henrique Magalhães e
ginástica pela manhã, que todos
fazíamos, para sermos belos e
úteis à pátria.
Um dia, o pai adormeceu na varanda. O rádio tocava, havia horas, uma complicada e sonolenta
ópera de Wagner e, embora ele
não admitisse, gostava mesmo
era da "Tosca", da "Butterfly", do
Puccini de cabo a rabo. Certo de
que o pai estava dormindo, fui ao
rádio, um Pilot de seis válvulas, e
mudei de estação.
A música sensual e redonda envolveu tudo, despertando súbita
vontade de também tocar piano.
Quando Carmem Miranda e Luís
Barbosa começaram a cantar,
olhei para o pai, ver se continuava dormindo. Estava acordado.
Rápido, mudei de estação, à cata dos soturnos berros do Lohengrin. Girei o botão de cá para lá,
procurando o Wagner perdido,
quando o pai disse uma coisa espantosa:
-Deixa, meu filho, deixa aí
mesmo.
-Mas é um samba, pai! Você
não gosta!
-É "No Tabuleiro da Baiana",
filho. É música da boa, é do Ary
Barroso.
Terceira noção: "No Tabuleiro
da Baiana".
A criança se fez homem e ganhou um amigo. Muita coisa se
passou de lá pra cá. Um dia, esse
amigo morreu. E o adulto escuro
de hoje, por fidelidade a um garoto, sentiu que, de repente, o mundo era menos mundo, as coisas
eram menos coisas.
Todo garoto que usava óculos
era Ary Barroso. O som da gaita
na hora do gol era também Ary
Barroso. "Se eu pedir, você me dá,
o seu coração, o seu amor de yayá" era ainda Ary Barroso. Mas
não era tudo, o todo que se chamava Ary Evangelista Resende
Barroso, natural de Ubá, Minas
Gerais, nascido em novembro de
1903, doutor em direito, locutor
esportivo, vereador, pianista de
cinema mudo, autor de revistas
nos teatros da praça Tiradentes,
torcedor do Flamengo e, sobretudo, o maior compositor brasileiro
de sua época e, segundo muitos, o
maior de todos os tempos.
Discute-se se a música brasileira mais tocada no mundo é
"Aquarela do Brasil" ou "Garota
de Ipanema". Desmentindo a crítica oficial, a música mais tocada,
que figura entre as cem mais executadas do repertório internacional, é o samba-enredo do Ary,
que alguns classificam de "samba
de exaltação", quando, na realidade, é o ponto de partida, o embrião dos sambas que cantam um
enredo durante o Carnaval.
Não tem primeira nem segunda
parte. Não tem introdução, e devemos lembrar que Ary escreveu
algumas das melhores introduções do nosso cancioneiro popular. Basta lembrar que uma orquestra sinfônica internacional, a
de Andrée Kostelanetz, gravou
em disco de 12 polegadas, em arranjos caprichados, a introdução
de "No Tabuleiro da Baiana".
Sua música mais famosa, não
exatamente a melhor, é uma sucessão de quadros, pinceladas de
uma aquarela que, até hoje, nos
identifica como povo. São poucos
os que lá fora conhecem o Hino
Nacional brasileiro. "Garota de
Ipanema" tem duas partes fragmentadas, uma tem a ver com o
Brasil, a outra podia ter sido feita
no Japão, na Croácia, nas Ilhas
Papuias. É música de festival, de
elevador, vinheta sonora que serve para qualquer coisa que não
seja exclusivamente o Brasil
Já a "Aquarela" só tem sentido
quando o clima pede não o festival, mas a festa. É tocada e dançada nos Réveillons dos navios de
cruzeiro, nas boates e nas ruas
onde se comemora o novo ano.
Num filme italiano de 1946, "Sotto il Sole de Roma", quando os
americanos entram em Roma para libertar a cidade eterna, os soldados de Mac Clark cantam a
"Aquarela" como um apelo ao
mundo novo que traria a paz.
Quarenta anos depois, num filme
inglês de Terry Gilliam, a mesma
música, em arranjos da Sinfônica
de Londres, é tocada o tempo todo
como símbolo de uma vida simples, mas alegre, colorida e livre.
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