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BERNARDO CARVALHO
Realismo cínico
Xiaodong pratica uma forma anacrônica de pintura. Faz desse anacronismo espetáculo
LIU XIAODONG não tem nada a
dizer. Ao longo de "Dong", documentário realizado sobre
ele por Jia Zhang-ke e exibido na
Mostra, o máximo que o pintor chinês consegue expressar são platitudes que não contradizem o populismo de declarações prévias, como:
"Só pinto o que um operário pode
ver". É preciso esclarecer que declarações como essa ficam muito
aquém de sua obra - e que muitas
vezes a contradizem. Tanto que Jia
Zhang-ke aos poucos vai se afastando do artista, para focalizar as pinturas e os modelos-vivos nelas retratados: operários em Fengjie, cidade
condenada pela construção da barragem das Três Gargantas, e garotas
de programa em Bancoc.
Liu Xiaodong, 43, pratica uma forma anacrônica de pintura. Como
um acadêmico, pinta grandes telas
diante da natureza e de modelos-vivos, como aprendeu na escola, a partir da observação dos clássicos. Faz
desse anacronismo um espetáculo.
É um virtuose. E seu virtuosismo
transforma tudo ao redor em encenação. Numa passagem de "Dong", o
pintor visita a família de um dos
operários que serviu de modelo para
um de seus quadros, um homem que
acaba de morrer num acidente durante a demolição de um prédio em
Fengjie. Leva presentes e as fotos do
morto posando durante as sessões
de pintura. A família chora e o artista chora com eles.
Liu Xiaodong é considerado o
maior pintor contemporâneo da
China. Ficou associado ao que se
convencionou chamar "realismo cínico" por oposição ao realismo socialista. Desde o início, manteve-se
ligado à sexta geração do cinema
chinês, que surgiu sob influência dos
movimentos estudantis e em reação
à repressão de 89. Atuou em filmes
de amigos cineastas, como no extraordinário "O Mundo", de Jia
Zhang-ke. Seu interesse pela paisagem e pelos modelos-vivos fez de
seu trabalho num sítio como a cidade fantasma de Fengjie onde, além
de equipes de demolição e de desinfecção, restaram apenas criminosos
e prostitutas, à espera da subida das
águas da represa, um espetáculo de
interesse incontestável para um documentário.
A construção da maior hidrelétrica do mundo, no rio Yangtze, cuja
região concentra 40% da produção
industrial chinesa, teve início em
1994. Deverá estar em pleno funcionamento até 2009. É a maior obra
de engenharia da China desde a
Grande Muralha. As proporções da
catástrofe ambiental, social e cultural não são menores. Dois milhões
de pessoas foram obrigadas a abandonar suas casas. Centenas de cidades e milhares de vilarejos, incluindo sítios históricos de até 3.500
anos, desaparecerão nas águas do
maior reservatório tóxico do planeta.
Convidado por Liu Xiaodong para
realizar um documentário em Fengjie, Jia Zhang-ke se deu conta de que
o local era uma metáfora poderosa
do fim do mundo e podia servir também como cenário de um filme de
ficção. O cineasta já havia situado
seu filme precedente sobre um pano
de fundo ao mesmo tempo real e absurdo: "O Mundo" tratava do cotidiano dos empregados de um parque temático que reproduz os grandes monumentos do mundo nos arredores de Pequim. Em "Still Life",
Leão de Ouro no Festival de Veneza,
também exibido na Mostra, Jia
Zhang-ke situa nas ruínas de Fengjie, diante da barragem das Três
Gargantas, o drama de um homem
em busca da mulher e da filha e de
uma mulher em busca do marido.
O filme reforça uma irrealidade
que já estava presente na própria
paisagem e que se mantém na ambigüidade documental até aparecer
um disco voador no céu ou um prédio em construção decolar para o espaço, como um foguete. Em "O
Mundo", a metáfora do lugar funcionava como força centrípeta: o mundo era recriado num parque temático de um subúrbio de Pequim. Em
"Still Life", a força é centrífuga: a
barragem das Três Gargantas representa, na ambigüidade entre desenvolvimento e destruição, a matriz de
um novo mundo que é ao mesmo
tempo o fim de todo idealismo.
Se por um lado as tradições chinesas submergem nas águas das Três
Gargantas, por outro é o modelo chinês que se impõe ao mundo pela
brecha da economia: a preponderância da imanência, do lucro material, contra todo sonho de transcendência. As Três Gargantas representam um modo de vida que se impõe
no vazio deixado pela falência do
projeto iluminista ocidental, que incluía o ideal de artista professado
por Liu Xiaodong. Uma representação que dá à definição "realismo cínico" uma conotação muito mais
paradoxal, trágica e abrangente do
que a que se restringia aos pintores
chineses que despontaram nos anos
80 como críticos do realismo socialista.
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