São Paulo, terça-feira, 07 de novembro de 2006

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BERNARDO CARVALHO

Realismo cínico

Xiaodong pratica uma forma anacrônica de pintura. Faz desse anacronismo espetáculo

LIU XIAODONG não tem nada a dizer. Ao longo de "Dong", documentário realizado sobre ele por Jia Zhang-ke e exibido na Mostra, o máximo que o pintor chinês consegue expressar são platitudes que não contradizem o populismo de declarações prévias, como: "Só pinto o que um operário pode ver". É preciso esclarecer que declarações como essa ficam muito aquém de sua obra - e que muitas vezes a contradizem. Tanto que Jia Zhang-ke aos poucos vai se afastando do artista, para focalizar as pinturas e os modelos-vivos nelas retratados: operários em Fengjie, cidade condenada pela construção da barragem das Três Gargantas, e garotas de programa em Bancoc.
Liu Xiaodong, 43, pratica uma forma anacrônica de pintura. Como um acadêmico, pinta grandes telas diante da natureza e de modelos-vivos, como aprendeu na escola, a partir da observação dos clássicos. Faz desse anacronismo um espetáculo. É um virtuose. E seu virtuosismo transforma tudo ao redor em encenação. Numa passagem de "Dong", o pintor visita a família de um dos operários que serviu de modelo para um de seus quadros, um homem que acaba de morrer num acidente durante a demolição de um prédio em Fengjie. Leva presentes e as fotos do morto posando durante as sessões de pintura. A família chora e o artista chora com eles.
Liu Xiaodong é considerado o maior pintor contemporâneo da China. Ficou associado ao que se convencionou chamar "realismo cínico" por oposição ao realismo socialista. Desde o início, manteve-se ligado à sexta geração do cinema chinês, que surgiu sob influência dos movimentos estudantis e em reação à repressão de 89. Atuou em filmes de amigos cineastas, como no extraordinário "O Mundo", de Jia Zhang-ke. Seu interesse pela paisagem e pelos modelos-vivos fez de seu trabalho num sítio como a cidade fantasma de Fengjie onde, além de equipes de demolição e de desinfecção, restaram apenas criminosos e prostitutas, à espera da subida das águas da represa, um espetáculo de interesse incontestável para um documentário.
A construção da maior hidrelétrica do mundo, no rio Yangtze, cuja região concentra 40% da produção industrial chinesa, teve início em 1994. Deverá estar em pleno funcionamento até 2009. É a maior obra de engenharia da China desde a Grande Muralha. As proporções da catástrofe ambiental, social e cultural não são menores. Dois milhões de pessoas foram obrigadas a abandonar suas casas. Centenas de cidades e milhares de vilarejos, incluindo sítios históricos de até 3.500 anos, desaparecerão nas águas do maior reservatório tóxico do planeta.
Convidado por Liu Xiaodong para realizar um documentário em Fengjie, Jia Zhang-ke se deu conta de que o local era uma metáfora poderosa do fim do mundo e podia servir também como cenário de um filme de ficção. O cineasta já havia situado seu filme precedente sobre um pano de fundo ao mesmo tempo real e absurdo: "O Mundo" tratava do cotidiano dos empregados de um parque temático que reproduz os grandes monumentos do mundo nos arredores de Pequim. Em "Still Life", Leão de Ouro no Festival de Veneza, também exibido na Mostra, Jia Zhang-ke situa nas ruínas de Fengjie, diante da barragem das Três Gargantas, o drama de um homem em busca da mulher e da filha e de uma mulher em busca do marido.
O filme reforça uma irrealidade que já estava presente na própria paisagem e que se mantém na ambigüidade documental até aparecer um disco voador no céu ou um prédio em construção decolar para o espaço, como um foguete. Em "O Mundo", a metáfora do lugar funcionava como força centrípeta: o mundo era recriado num parque temático de um subúrbio de Pequim. Em "Still Life", a força é centrífuga: a barragem das Três Gargantas representa, na ambigüidade entre desenvolvimento e destruição, a matriz de um novo mundo que é ao mesmo tempo o fim de todo idealismo.
Se por um lado as tradições chinesas submergem nas águas das Três Gargantas, por outro é o modelo chinês que se impõe ao mundo pela brecha da economia: a preponderância da imanência, do lucro material, contra todo sonho de transcendência. As Três Gargantas representam um modo de vida que se impõe no vazio deixado pela falência do projeto iluminista ocidental, que incluía o ideal de artista professado por Liu Xiaodong. Uma representação que dá à definição "realismo cínico" uma conotação muito mais paradoxal, trágica e abrangente do que a que se restringia aos pintores chineses que despontaram nos anos 80 como críticos do realismo socialista.


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