São Paulo, sexta-feira, 07 de novembro de 2008

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CINEMA / ESTRÉIAS

Crítica/"O Silêncio de Lorna"

Melodrama é recriado pelos Dardenne

"O Silêncio de Lorna", prêmio de melhor roteiro na mais recente edição do Festival de Cannes, mostra dilemas de albanesa

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Em quantos filmes já vimos antes aparecerem telefones celulares? Centenas. Não me lembro de ter visto, em nenhum deles, alguém se preocupar com esse ato comezinho que consiste em colocar o aparelho para recarregar a bateria. Ora, na vida real essa é uma preocupação cotidiana ("Esqueci de carregar o celular"; "Deixei meu celular em casa recarregando" etc.
-são frases que escutamos a toda hora). Por que então está ausente dos filmes? Em "O Silêncio de Lorna", logo no início, Lorna fala ao telefone enquanto o recarrega.
Basta isso para saber que este será um bom filme, porque bons filmes são os que prestam atenção a esse tipo de gesto.
Todo o restante do filme é pontuado por notações desse tipo (embora não sobrecarregado por elas). Não que a intriga não seja forte. Ela é ótima.
Lorna (Arta Dobroshi) é uma albanesa que fez um "casamento branco" com um viciado em heroína apenas para conseguir nacionalidade belga. Na verdade ela está apaixonada por outro albanês, Sokol (Alban Ukaj), com quem planeja abrir uma lanchonete.
Mas ela não tem dinheiro.
Para tanto é preciso se livrar de Claudy (Jérémie Renier), o viciado. Casará então com um russo que pagará um bom dinheiro para obter a mesma nacionalidade que Lorna já conseguiu.

Albânia
Dito assim, pode-se pensar em um melodrama de última.
Mas não. Os irmãos Dardenne são dos poucos cineastas europeus a perceber aí um drama europeu contemporâneo e forte: a Albânia, a necessidade de sobreviver, de ganhar dinheiro, de entrar na Europa e poder trabalhar.
Tornar-se legal. O problema de Lorna é que tornar-se legal implica uma série de ilegalidades. O seu primeiro casamento é um arranjo não muito honesto. O segundo supõe riscos ainda maiores: ela quer divorciar-se de Claudy, mas o agente dessas transações, Fabio (Fabrizio Rongione), acha que é possível livrar-se de um drogado de forma mais radical sem levantar maiores questionamentos. E por aí vai.
A arte dos Dardenne começa por ser arte da escansão: suspender o sentido, mostrar as coisas cuidadosamente, medir a informação e transmiti-la de modo a instigar a curiosidade do espectador.
Para tanto, também, há a inserção de dados inesperados: a relação mãe/filho que Lorna passa a manter com Claudy, e que terá repercussões posteriores; a hipótese de construir sua felicidade sobre a morte de alguém; a responsabilidade sobre outra vida.

Ecos de Bresson
No mundo de Jean-Pierre e Luc Dardenne, roteiristas e diretores de "O Silêncio de Lorna", é como se a luz estivesse ausente -um pouco como Robert Bresson (1901-1999)-, mas, ao contrário deste, fosse preciso buscá-la contra toda a lógica. Pois a lógica, isto é, a maneira como o mundo se organiza, monstruosamente, elimina valores. Lorna, em seu silêncio, sabe que um mundo não pode se sustentar dessa maneira. É em função disso que age.
Um segundo para comentar o final (sem nada revelar): em sua vagueza, parece um tanto frouxo, mas é muito pouco para diminuir um filme tão belo, de roteiro premiado em Cannes neste ano.

O SILÊNCIO DE LORNA
Produção: Bélgica/Inglaterra/França/Itália/Alemanha, 2008
Direção: Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne
Com: Arta Dobroshi, Jérémie Renier, Fabrizio Rongione
Onde: a partir de hoje no Cine Bombril 1, Reserva Cultural 1 e circuito
Classificação: não indicado a menores de 16 anos
Avaliação: ótimo



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