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CINEMA / ESTRÉIAS
Crítica/"O Silêncio de Lorna"
Melodrama é recriado pelos Dardenne
"O Silêncio de Lorna", prêmio de melhor roteiro na mais recente edição do Festival de Cannes, mostra dilemas de albanesa
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Em quantos filmes já vimos antes aparecerem
telefones celulares?
Centenas. Não me lembro de
ter visto, em nenhum deles, alguém se preocupar com esse
ato comezinho que consiste em
colocar o aparelho para recarregar a bateria. Ora, na vida real
essa é uma preocupação cotidiana ("Esqueci de carregar o
celular"; "Deixei meu celular
em casa recarregando" etc.
-são frases que escutamos a
toda hora). Por que então está
ausente dos filmes?
Em "O Silêncio de Lorna", logo no início, Lorna fala ao telefone enquanto o recarrega.
Basta isso para saber que este
será um bom filme, porque
bons filmes são os que prestam
atenção a esse tipo de gesto.
Todo o restante do filme é
pontuado por notações desse
tipo (embora não sobrecarregado por elas). Não que a intriga não seja forte. Ela é ótima.
Lorna (Arta Dobroshi) é uma
albanesa que fez um "casamento branco" com um viciado em
heroína apenas para conseguir
nacionalidade belga. Na verdade ela está apaixonada por outro albanês, Sokol (Alban Ukaj),
com quem planeja abrir uma
lanchonete.
Mas ela não tem dinheiro.
Para tanto é preciso se livrar
de Claudy (Jérémie Renier), o
viciado. Casará então com um
russo que pagará um bom
dinheiro para obter a mesma
nacionalidade que Lorna já
conseguiu.
Albânia
Dito assim, pode-se pensar
em um melodrama de última.
Mas não. Os irmãos Dardenne
são dos poucos cineastas europeus a perceber aí um drama
europeu contemporâneo e forte: a Albânia, a necessidade de
sobreviver, de ganhar dinheiro,
de entrar na Europa e poder
trabalhar.
Tornar-se legal. O problema
de Lorna é que tornar-se legal
implica uma série de ilegalidades. O seu primeiro casamento
é um arranjo não muito honesto. O segundo supõe riscos ainda maiores: ela quer divorciar-se de Claudy, mas o agente dessas transações, Fabio (Fabrizio
Rongione), acha que é possível
livrar-se de um drogado de forma mais radical sem levantar
maiores questionamentos. E
por aí vai.
A arte dos Dardenne começa
por ser arte da escansão: suspender o sentido, mostrar as
coisas cuidadosamente, medir
a informação e transmiti-la de
modo a instigar a curiosidade
do espectador.
Para tanto, também, há a inserção de dados inesperados: a
relação mãe/filho que Lorna
passa a manter com Claudy, e
que terá repercussões posteriores; a hipótese de construir sua
felicidade sobre a morte de alguém; a responsabilidade sobre
outra vida.
Ecos de Bresson
No mundo de Jean-Pierre e
Luc Dardenne, roteiristas e diretores de "O Silêncio de Lorna", é como se a luz estivesse
ausente -um pouco como Robert Bresson (1901-1999)-,
mas, ao contrário deste, fosse
preciso buscá-la contra toda a
lógica. Pois a lógica, isto é, a maneira como o mundo se organiza, monstruosamente, elimina
valores. Lorna, em seu silêncio,
sabe que um mundo não pode
se sustentar dessa maneira. É
em função disso que age.
Um segundo para comentar
o final (sem nada revelar): em
sua vagueza, parece um tanto
frouxo, mas é muito pouco para
diminuir um filme tão belo, de
roteiro premiado em Cannes
neste ano.
O SILÊNCIO DE LORNA
Produção: Bélgica/Inglaterra/França/Itália/Alemanha, 2008
Direção: Jean-Pierre Dardenne e Luc
Dardenne
Com: Arta Dobroshi, Jérémie Renier,
Fabrizio Rongione
Onde: a partir de hoje no Cine Bombril
1, Reserva Cultural 1 e circuito
Classificação: não indicado a menores
de 16 anos
Avaliação: ótimo
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