São Paulo, sexta-feira, 07 de novembro de 2008

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CARLOS HEITOR CONY

A glória, ainda que tardia


Lembro um amigo que sofria horrores porque o nome dele nunca aparecia nas folhas

DO MEU canto solitário acompanho andanças e festanças de conhecidos e desconhecidos fazendo um esforço danado para serem homenageados, cobrando dos contemporâneos as parafernálias a que têm justo direito. Evidente que muita gente e muitos eventos merecem da pátria e de todos nós o venerado respeito, a alegria louçã (a que ponto cheguei!) por celebridades e efemérides tais e tantas.
Há que louvar, nessa ânsia de comemorações, o desconfiômetro dessa gente toda. Antigamente, um político, artista, um cientista se tinha um olho voltado para o seu tempo, para o vizinho, a associação de bairro, o colunista do jornal e para o telegrama de felicitações do ministro da Educação, tinha o outro olho voltado para a posteridade, na certeza de que ninguém é profeta em seu próprio tempo e que não se podia negar às gerações vindouras o direito e o prazer de apreciar obra deixada.
Tantas foram as decepções póstumas (isso não soa bem, mas lá vai), tantos foram os equívocos da história, que o pessoal achou que a glória é importante demais para ser administrada pelos outros que ainda nascerão. Cada um está tratando de gerenciar a si próprio -o que é justo, e, até certo ponto, lógico. Depois de morto, de que adiantam louvores e pasmos?
Bem, digo isso porque estou estranhando o excesso de comemorações, celebrações, eventos e deslumbradas homenagens que acontecem todas as semanas. Certo, certo, todos merecem a consagração contemporânea e merecerão, muito mais, a glória, no futuro, pois são autores de obras e façanhas perenes que marcarão nosso tempo. O diabo é que nem sempre essas homenagens são espontâneas: parecem-se, um pouco, com as manifestações do povo em época de ditadura: os estádios se enchem para festejar o aniversário do ditador, na base da mais legítima espontaneidade. Há sempre um órgão do governo ou uma estatal por trás dessas promoções espontâneas.
Outro dia fiquei surpreendido quando me falaram na ponte Marechal Costa e Silva. Tomei informações e fiquei sabendo que se tratava da doméstica ponte Rio-Niterói. Cito dois casos de indiscutível merecimento: nada mais justo do que o nome de Mário Filho para o estádio municipal do Rio. Mas, para todos os efeitos, ele continua sendo Maracanã. O mesmo está acontecendo com o aeroporto Maestro Antônio Carlos Jobim, que continua sendo Galeão ou GIG nas etiquetas de bagagem e nos bilhetes para destinos nacionais e internacionais.
Muitas vezes há uma certa forçazinha que os próprios homenageados fazem, discretamente ou não, botando em campo seus admiradores reais ou compulsórios. Digo isso porque, como jornalista há alguns anos, é raro o dia em que não sou cantado para engrossar méritos e louvores de um ou outro aniversariante ou festejante.
O assédio era físico, o interessado telefonava ou aparecia pessoalmente para descolar o registro de sua próxima façanha. Hoje, com a internet, a caixa postal de qualquer editor ou comunicador fica entupida de estréias, lançamentos de moda e livros, exposições, shows, mesas-redondas. O mais assombroso é que há profissionais capazes de cumprir a agenda sem faltar a nenhum evento, inclusive a missas de sétimo dia, velórios e enterros.
Dizem que o finado Ataulpho de Paiva, figura pitoresca que chegou ao Supremo Tribunal Federal sem ser jurista e à Academia Brasileira de Letras sem ter publicado um só livro, tinha o dom da ubiqüidade e era visto e apreciado em reuniões que aconteciam ao mesmo tempo em Paris, Botafogo e Realengo.
Bem, não digam vós outros que falo por despeito. Realmente, nunca fui festejado. Nem creio que o serei, agora, e muito menos na posteridade. Mas lembro um amigo que sofria horrores porque o nome dele nunca aparecia nas folhas, num tempo em que os colunistas usavam um tipo de citação na base: "Atravessando a avenida Rio Branco o poeta Fulano". "Jantando no Copa, em boa companhia, o empresário Sicrano."
O sujeito reclamava: "Eu janto todos os dias, atravesso mil ruas diariamente e nunca fui citado!". O foi, um dia: morreu atropelado na rua Senhor dos Passos, aos 51 anos.


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