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FORNADA DO MILÊNIO
Nos EUA, se acham fórmulas para rir de tudo
GERALD THOMAS
em Nova York
Já no finalzinho de "Advogado do Diabo", Al Pacino (brilhante no papel de Mephisto)
diz, sorrindo: "Posso dizer,
tranquilamente, que o século
20 inteiro foi meu". Seu riso
abundante substitui aquilo
que, no Mephisto de Goethe, é
tão sombrio. E não é à toa.
Pacino faz um Mephisto norte-americano. E os norte-americanos sempre acharam fórmulas brilhantes para rir de
tudo. Riem do "peso da história", riem da fatalidade, riem
do acidente, riem da tragédia,
riem de sua própria superficialidade.
Esse país é, assumidamente,
um adolescente. E é nessa superfície que desembarcaram
milhões de "densos" Faustos e
Mephistos desempregados,
frustrados, autodestruídos pelas guerras. Todos desembarcam aqui para reaprender a
graça das coisas.
Judeus, muçulmanos, ucranianos, escandinavos, asiáticos, o diabo a quatro, todos
vieram para essa "superfície"
pegar oxigênio e rir dos xeiques, dos "hitleres", dos fascistas em geral.
Aqui esses personagens históricos cedem o lugar às "supremacias irresponsáveis" dos
norte-americanos, ou seja, aos
"comics" (os cômicos) e todos
vão brincar, atuar ("play") até
o fim da festa. E, brincando,
brincam de transformar os algozes da história em meros
coadjuvantes nos musicais.
Enfileirados por ordem alfabética, Hitler dança com Hussein, Franco com algum faraó,
elefante com filósofo, todos
dançando, como um samba de
crioulo doido.
É de deixar os intelectuais latino-americanos malucos. Como "tolerar" tanta irresponsabilidade, tanta "leveza" e tanto sucesso? Os intelectuais se
sentem pessoalmente ofendidos, rejeitados, seu narciso
quebrado. É como se suas
"densas" vidas devotadas ao
"entendimento" do "especiem" humano passassem a
não valer nada, coitados. Daí
em diante, rejeitam tudo. Reclamam da vida, do show, de
quem "faz" e de quem participa. Ficam parecidos com aquele vizinho histérico batendo
com o cabo da vassoura no teto
para tentar interromper a festa
no andar de cima.
Se pudesse, transformava logo o cabo de vassoura em arma, invadia a festa e deixava
ver. Depois reinaria supremo
como um pequeno fascista, feliz com sua pequena vitória.
Vale a pena dizer que a
maior parte da crítica de arte
do mundo nasce desse tipo de
sentimento. O pior tipo de fascista é o crítico que já exerceu
a liberdade artística e depois se
sentiu incompetente de prosseguir desenvolvendo um discurso à altura de alguma metáfora, de rir de si mesmo.
Pior que isso, só quando passam de críticos a ministros
com poder. E, uma vez no poder, censuram a piada e substituem o "show" por aquilo que
chamam de "reflexão". Lembra aquele professor emburrado que manda o menino malcriado para um canto, "refletir"?
A arte, no entanto, jamais
deixará de ser uma piada. Na
Broadway de agora, dançam o
fim trágico de um navio afundado e, em Hollywood, dança
a fotogenia esquisita da década de 70. Os "densos" Faustos e
Mephistos podem se enfurecer
mais uma vez com a leveza
norte-americana.
Falta de reflexão? De forma
alguma. Mas uma reflexão
bem-humorada, capaz de muita auto-ironia (como isso faz
falta no Brasil, não?). Por
exemplo, Courtney Love, pouco tempo após a morte trágica
de seu marido, Kurt Cobain,
transformava sua vivência em
personagem, vivendo na tela a
mulher de Larry Flint.
Paralelamente com sua "recuperação" perante a sociedade, Courtney Love construía
uma piada em vários níveis.
Aparecia em público "regenerada", bem vestida, cara saudável, enquanto retratava na
tela -crítica e ironicamente- alguém que levou o vício
das drogas às últimas consequências, ou seja, ela mesma.
Quem ria mais que Courtney
Love no dia da estréia? Ninguém. O público ria junto. O
narciso norte-americano estava vingado.
Será que essa "leveza" é tão
difícil de engolir? Será que a
história "oficial" terá de ser,
sempre, uma história ranzinza? Será que a política e o exercício do poder serão sempre
fruto de um processo pessoal
de rejeição, de incompetência?
Será que os pequenos ditadores, os xenófobos, os medíocres
nacionalistas vão sempre tentar reescrever a história, procurando acomodar seus interesses e a ridícula espessura de
seus dedos mindinhos apontando furiosamente para
aqueles que tiraram a vida, e
seus mistérios, de letra? Lacan
é uma piada. Duchamp é uma
piada. Warhol é uma piada.
Esther Williams, Gene Kelly,
Super-Homem, Ronald Reagan, todos, uma piada. Os faraós dançantes, a dança sincronizada na piscina, isso tudo
é uma piada.
Mas, se o sucesso da América
parece realmente ser uma
ofensa pessoal, o fracasso da
amargura não haveria mesmo
de ser elogio para ninguém.
Não poder rir da história e de
si mesmo pode ter tristes consequências.
A história é triste? Sem dúvida. Mas ainda assim é melhor
manter o humor, a leveza e fazer como John Woo, chinês colonizado pelos ingleses, que
desembarcou aqui para rir de
sua história. E o que é ainda
melhor: ele o faz ativamente,
por meio da arte que abraçou,
o cinema.
Questionado sobre seu nome
"verdadeiro", Mephisto/Pacino/América responde, generoso: "Nesses dois milênios de
existência, já tive tantos nomes, tantos disfarces". Num
diálogo que faz naufragar de
vez o barroquismo europeu
(que ainda contagia intelectuais do Hemisfério Sul), ele
responde: "É inútil. Tentei de
tudo. Nos últimos 500 anos tenho me dado bem com o título
de 'papai'. Just call me dad".
E-mail 103266.3640@Compuserve.com
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