São Paulo, sábado, 7 de novembro de 1998

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Inquisição e ilusão

ALBERTO DINES
Colunista da Folha

˛ Lembro-me da Greta Garbo cada vez que o deputado Antonio Delfim Netto pronuncia-se sobre a situação econômica escondendo a decisiva contribuição do seu "milagre" brasileiro ao atual estado das coisas. A remissão é às avessas, naturalmente. Enquanto a perturbadora sueca, ao envelhecer e se omitir, queria apenas que lembrassem sua imagem jovem, o professor-deputado passa uma borracha no que andou aprontando nos anos de chumbo.
Lidar com o passado não é fácil, requer humildade. Sobretudo, memória. Juntas, impedem que o passado seja rearrumado ou adulterado. O que nos leva a concluir que há dois tipos de passado: o faz-de-conta, ilusório, indolor, e o pretérito-aguilhão, que incomoda. Regenerador.
A Inquisição está nos jornais. O Vaticano surpreendeu novamente ao instalar, há dias, um simpósio que abre caminho para o julgamento público da mais sombria e duradoura instituição da igreja. No texto do manifesto de intelectuais e estadistas publicado no "Le Monde" em apoio ao presidente Clinton e em repúdio ao promotor Kenneth Starr, foram expressamente mencionadas a Inquisição e os inquisidores (uma não existiria sem a vocação dos outros).
Pouco antes das nossas eleições, as autoridades eclesiásticas fluminenses distribuíram nas igrejas um índex com os nomes daqueles que não mereciam a confiança dos eleitores católicos: incluíam-se candidatos de outras religiões bem como os adversários do ensino religioso obrigatório. O índex punia, assim, os democratas que defendem a completa separação entre igreja e Estado.
Na seção de cartas dos leitores do "Jornal do Brasil" entre 24/7 e 19/9, travou-se uma sugestiva polêmica sobre a Inquisição sustentada por d. Estevão Bettencourt e alguns leitores. O teólogo e monge beneditino reclamava que a imprensa é "pouco fiel à realidade" quando trata do Santo Ofício. D. Estevão lembrava que este não foi apenas um tribunal religioso, mas também civil, contribuindo para a manutenção da ordem pública.
"Data venia", equivoca-se o insigne teólogo no que tange à Inquisição "moderna" -aquela sobre a qual há fartíssima documentação e que floresceu na península Ibérica e seus domínios entre 1480 e 1834. A melhor prova disso é um dos clássicos eufemismos da linguagem inquisitorial. A sentença capital não falava em morte, pedia apenas que os culpados fossem "relaxados", isto é entregues, à Justiça secular. O dicionarista patrício Antônio Moraes e Silva, enroscado pelo Santo Ofício de Coimbra no fim do século 18, registra o significado ambíguo: "relaxar à Justiça secular" consistia no ato simbólico de entregar à Relação (Justiça civil) os réus impenitentes e obstinados para a devida execução. Portanto, havia dois aparelhos judiciários, um para coibir heresias, outro para manter a ordem pública e liquidar heréticos. Principais vítimas da Inquisição ibérica, os judeus também andam esquecidos de algumas das suas monstruosas sutilezas. Sobretudo, o establishment judaico da Diáspora atrelado a um Estado, o de Israel, cada vez mais teocrático. Ao reclamar contra a canonização de Edith Stein, a freira martirizada pelos nazistas em Auschwitz, levantaram-se algumas vozes para lembrar que foi assassinada como judia e não como religiosa católica.
Isto altera a essência do Holocausto? Se a igreja quis fazer dela uma santa, a primeira judia depois de Maria só pode ser louvada por lembrar a barbárie que outros já querem esquecer. Esta tola polêmica acesa por quem aciona a história, mas não conhece a história, nos remete a outro dos refinamentos da Inquisição ibérica: aos "relaxados" era oferecida a sublime graça de escolher se queriam morrer na Lei de Moisés ou na Lei de Cristo. O meu biografado, o poeta e teatrólogo brasileiro Antônio José da Silva, preferiu morrer na Lei de Cristo. Poupado da morte lenta na fogueira, foi esganado e depois teve o cadáver queimado. Morreu como católico, retornado ao seio da Santa Madre Igreja. Isso, por acaso, invalida o martírio daquele cuja alcunha civil e literária é "o Judeu"?
Na noite de 3 de novembro, em Lisboa, realizou-se homenagem póstuma ao sábio Elias Lipiner, brasileiro naturalizado, recentemente morto em Israel, a propósito do lançamento de uma de suas últimas obras, "Os Baptizados em Pé - Estudos acerca da Origem e Luta dos Cristãos-Novos em Portugal" (Vega, Lisboa, 492 págs). Obra seminal, preenche uma lacuna nos 150 anos da historiografia luso-hebraica ao revelar em detalhe, baseado em fontes bilíngues, o episódio da conversão em massa dos judeus expulsos da Espanha (4 ou 5 de dezembro, 1496). Batizados em pé, porque eram adultos e foram forçados; recém-nascidos batizam-se no colo.
A Inquisição portuguesa só viria a ser estabelecida 40 anos depois (1536), mas por puro pragmatismo -as insondáveis e superiores razões de Estado- d. Manuel, o Venturoso, antecipava-se à tenebrosa instituição vulgarizando uma expressão, portuguesa com certeza: "cristãos novos". Spinoza, no século 17, já perguntava: se converteram-se, por que o estigma de "novos"? Se aderiram, por que colocá- los à parte?
Este gigantesco faz-de-conta é um dos esteios do universo linguístico e moral da Inquisição, mentalidade barroca que ainda influencia os espasmos autoritários modernos. Para sobreviver ao longo de quase nove séculos, a Inquisição precisou criar um idioma próprio, ambíguo e eufemístico, para disfarçar a violência intrínseca. Uma das obras póstumas de Lipiner, a ser publicada breve em Portugal, será a nova versão, ampliada, de "Santa Inquisição, Terror e Linguagem" (editora Documentário, Rio, 1977). Lançada durante o regime militar, esgotou-se rapidamente pelas ilações que propunha.
O palavreado falso socorre-se em literaturas esconsas. Para justificar-se e durar, a Inquisição estabeleceu vasta jurisprudência alicerçada na teologia -editos, manuais, códigos, diretórios, tratados. Cada nova situação gerava um cartapácio legitimador. O vale-tudo carece de regulamentos. O desrespeito ao mais comezinho direito humano -escolher e eleger- amparava-se numa algarvia pseudo-legal, considerando-o como heresia (a etimologia é a mesma, cf. "Manual dos Inquisidores", de Nicolau Eymerich ou Emérico, Rosa dos Tempos, Rio, 1993).
Na obra de Franz Kafka e no adjetivo resultante, kafkiano, estão evidentes alusões ao emaranhado inquisitorial que enreda até o inquisidor. Ionesco, com "Os Rinocerontes" -da mesma espécie do Cacareco-, pensava em nossa estranha vocação para conviver com as aberrações.
˛
Notas: Recém-lançado, "O Diabo", de Luther Link (Cia. das Letras, 229 págs.), também trata da fabricação de heresias. Pela editora Perspectiva sairá em breve um volume de estudos em homenagem a Elias Lipiner.



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