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Inquisição e ilusão
ALBERTO DINES
Colunista da Folha
˛
Lembro-me da Greta Garbo
cada vez que o deputado Antonio Delfim Netto pronuncia-se
sobre a situação econômica escondendo a decisiva contribuição do seu "milagre" brasileiro
ao atual estado das coisas. A remissão é às avessas, naturalmente. Enquanto a perturbadora sueca, ao envelhecer e se
omitir, queria apenas que lembrassem sua imagem jovem, o
professor-deputado passa uma
borracha no que andou aprontando nos anos de chumbo.
Lidar com o passado não é fácil, requer humildade. Sobretudo, memória. Juntas, impedem
que o passado seja rearrumado
ou adulterado. O que nos leva a
concluir que há dois tipos de
passado: o faz-de-conta, ilusório, indolor, e o pretérito-aguilhão, que incomoda. Regenerador.
A Inquisição está nos jornais.
O Vaticano surpreendeu novamente ao instalar, há dias, um
simpósio que abre caminho para o julgamento público da
mais sombria e duradoura instituição da igreja. No texto do
manifesto de intelectuais e estadistas publicado no "Le Monde" em apoio ao presidente
Clinton e em repúdio ao promotor Kenneth Starr, foram expressamente mencionadas a Inquisição e os inquisidores (uma
não existiria sem a vocação dos
outros).
Pouco antes das nossas eleições, as autoridades eclesiásticas fluminenses distribuíram
nas igrejas um índex com os nomes daqueles que não mereciam a confiança dos eleitores
católicos: incluíam-se candidatos de outras religiões bem como os adversários do ensino religioso obrigatório. O índex punia, assim, os democratas que
defendem a completa separação entre igreja e Estado.
Na seção de cartas dos leitores
do "Jornal do Brasil" entre 24/7
e 19/9, travou-se uma sugestiva
polêmica sobre a Inquisição
sustentada por d. Estevão Bettencourt e alguns leitores. O
teólogo e monge beneditino reclamava que a imprensa é
"pouco fiel à realidade" quando trata do Santo Ofício. D. Estevão lembrava que este não foi
apenas um tribunal religioso,
mas também civil, contribuindo para a manutenção da ordem pública.
"Data venia", equivoca-se o
insigne teólogo no que tange à
Inquisição "moderna" -aquela sobre a qual há fartíssima
documentação e que floresceu
na península Ibérica e seus domínios entre 1480 e 1834. A melhor prova disso é um dos clássicos eufemismos da linguagem
inquisitorial. A sentença capital não falava em morte, pedia
apenas que os culpados fossem
"relaxados", isto é entregues, à
Justiça secular. O dicionarista
patrício Antônio Moraes e Silva, enroscado pelo Santo Ofício
de Coimbra no fim do século 18,
registra o significado ambíguo:
"relaxar à Justiça secular" consistia no ato simbólico de entregar à Relação (Justiça civil) os
réus impenitentes e obstinados
para a devida execução. Portanto, havia dois aparelhos judiciários, um para coibir heresias, outro para manter a ordem pública e liquidar heréticos. Principais vítimas da Inquisição ibérica, os judeus também andam esquecidos de algumas das suas monstruosas sutilezas. Sobretudo, o establishment judaico da Diáspora
atrelado a um Estado, o de Israel, cada vez mais teocrático.
Ao reclamar contra a canonização de Edith Stein, a freira martirizada pelos nazistas em
Auschwitz, levantaram-se algumas vozes para lembrar que foi
assassinada como judia e não
como religiosa católica.
Isto altera a essência do Holocausto? Se a igreja quis fazer
dela uma santa, a primeira judia depois de Maria só pode ser
louvada por lembrar a barbárie
que outros já querem esquecer.
Esta tola polêmica acesa por
quem aciona a história, mas
não conhece a história, nos remete a outro dos refinamentos
da Inquisição ibérica: aos "relaxados" era oferecida a sublime
graça de escolher se queriam
morrer na Lei de Moisés ou na
Lei de Cristo. O meu biografado, o poeta e teatrólogo brasileiro Antônio José da Silva, preferiu morrer na Lei de Cristo.
Poupado da morte lenta na fogueira, foi esganado e depois teve o cadáver queimado. Morreu
como católico, retornado ao
seio da Santa Madre Igreja. Isso, por acaso, invalida o martírio daquele cuja alcunha civil e
literária é "o Judeu"?
Na noite de 3 de novembro,
em Lisboa, realizou-se homenagem póstuma ao sábio Elias
Lipiner, brasileiro naturalizado, recentemente morto em Israel, a propósito do lançamento
de uma de suas últimas obras,
"Os Baptizados em Pé - Estudos
acerca da Origem e Luta dos
Cristãos-Novos em Portugal"
(Vega, Lisboa, 492 págs). Obra
seminal, preenche uma lacuna
nos 150 anos da historiografia
luso-hebraica ao revelar em detalhe, baseado em fontes bilíngues, o episódio da conversão
em massa dos judeus expulsos
da Espanha (4 ou 5 de dezembro, 1496). Batizados em pé,
porque eram adultos e foram
forçados; recém-nascidos batizam-se no colo.
A Inquisição portuguesa só viria a ser estabelecida 40 anos
depois (1536), mas por puro
pragmatismo -as insondáveis
e superiores razões de Estado-
d. Manuel, o Venturoso, antecipava-se à tenebrosa instituição
vulgarizando uma expressão,
portuguesa com certeza: "cristãos novos". Spinoza, no século
17, já perguntava: se converteram-se, por que o estigma de
"novos"? Se aderiram, por que
colocá- los à parte?
Este gigantesco faz-de-conta é
um dos esteios do universo linguístico e moral da Inquisição,
mentalidade barroca que ainda
influencia os espasmos autoritários modernos. Para sobreviver ao longo de quase nove séculos, a Inquisição precisou
criar um idioma próprio, ambíguo e eufemístico, para disfarçar a violência intrínseca. Uma
das obras póstumas de Lipiner,
a ser publicada breve em Portugal, será a nova versão, ampliada, de "Santa Inquisição, Terror e Linguagem" (editora Documentário, Rio, 1977). Lançada durante o regime militar, esgotou-se rapidamente pelas ilações que propunha.
O palavreado falso socorre-se
em literaturas esconsas. Para
justificar-se e durar, a Inquisição estabeleceu vasta jurisprudência alicerçada na teologia
-editos, manuais, códigos, diretórios, tratados. Cada nova
situação gerava um cartapácio
legitimador. O vale-tudo carece
de regulamentos. O desrespeito
ao mais comezinho direito humano -escolher e eleger-
amparava-se numa algarvia
pseudo-legal, considerando-o
como heresia (a etimologia é a
mesma, cf. "Manual dos Inquisidores", de Nicolau Eymerich
ou Emérico, Rosa dos Tempos,
Rio, 1993).
Na obra de Franz Kafka e no
adjetivo resultante, kafkiano,
estão evidentes alusões ao emaranhado inquisitorial que enreda até o inquisidor. Ionesco,
com "Os Rinocerontes" -da
mesma espécie do Cacareco-,
pensava em nossa estranha vocação para conviver com as
aberrações.
˛
Notas: Recém-lançado, "O
Diabo", de Luther Link (Cia.
das Letras, 229 págs.), também
trata da fabricação de heresias.
Pela editora Perspectiva sairá
em breve um volume de estudos
em homenagem a Elias Lipiner.
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