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CONTARDO CALLIGARIS
Os feridos das festas
No dia 1º de janeiro, os prontos-socorros recebem sempre alguma vítima dos fogos de
artifício do Réveillon.
Retomando o trabalho depois
dos feriados, os psicoterapeutas e
os psicanalistas também costumam atender os feridos da estação. São as vítimas de rojões tão
explosivos quanto os outros: os
encontros de família das festas de
fim de ano.
Existe uma explicação básica
para essa patologia: o Natal, em
particular, idealiza a reunião de
família a tal ponto que uma decepção é dificilmente evitável.
Desta vez, no meu consultório,
compareceram, no mesmo dia,
três adultos (entre 40 e 65 anos)
acidentados no encontro com os
pais idosos. Talvez, quando filhos
e filhas já encaminhados na vida
se sentam à mesa natalina com
seus pais, uma eventual insatisfação seja mais provável e aguda,
pois todos esperam viver um momento perfeito, que constitua
uma lembrança, uma última foto
feliz.
Seja como for, fiquei com as reflexões que seguem.
É raríssimo que os pais não
transmitam nada a seus filhos.
Mesmo quando um filho ou uma
filha acreditam que inventaram
sua vida a partir do zero, sem amparo e sem nenhuma herança
material ou simbólica, descobre-se que existiu um legado. Pode
ser, aparentemente, pouca coisa:
um exemplo de coragem ou de
humildade diante de adversidades e sofrimentos, uma palavra
que manifestou uma ambição
frustrada e deixada para os filhos
e as filhas cumprirem.
Ora, quando paira no ar a sensação de que os pais não permanecerão para sempre na Terra, é
frequente que o encontro de Natal
seja assombrado pela tentação de
fechar o balanço dessa transmissão (isso vale sobretudo se o Natal
for a ocasião rara, anual, por
exemplo, de uma reunião de toda
a família). Como na famosa parábola, os pais idosos querem verificar se os filhos fizeram bom
uso da herança. É uma contabilidade silenciosa, implícita em pequenas expressões de aprovação
ou reprovação, mas facilmente
explosiva.
Os pais querem consolar-se com
a constatação de que imprimiram uma marca nos filhos e confirmar que foram indispensáveis.
Mas é comum que seu legado seja
ambíguo. Por exemplo, a herança
que um pai destina a seus filhos é
uma pequena loja que ele consolidou ao longo de 50 anos de esforços, mas, na verdade, seu sonho
era mandar o negócio para o beleléu e sair velejando pelo mundo.
A contragosto, a filha ficou com o
comércio de família, convencida
de satisfazer o desejo paterno,
mas, no jantar natalino, constata
que o preferido é o irmão, o qual
leva uma vida de surfista pelas
praias australianas. Quem ficou
com a verdadeira herança? Quem
é o conforto do pai no fim do dia?
Difícil dizer.
Além disso, os filhos têm uma
relação incerta com o legado que
recebem. Receiam que, reconhecendo sua dívida, eles sacrificariam sua autonomia, ou melhor,
comprometeriam a imagem de si
mesmos (autônomos) que eles
gostam de projetar nas telas de
seu cinema de bolso.
Tudo isso não passa de ordinária administração. A pequena série de acidentados deste começo
de ano trouxe algo mais. Nas cenas que me foram relatadas, todas emocional ou fisicamente
violentas, manifestava-se uma espécie de rancor dos pais. O estranho é que em nenhum dos casos
dava para dizer que os filhos não
tivessem aceitado e hasteado a tocha de seus genitores, de uma maneira ou de outra. A raiva manifestada pelos pais parecia abstrata, sem objeto, e culminava regularmente com a promessa de "deserdar" filhas ou filhos. As ameaças não seriam levadas à frente;
de qualquer forma, nada poderia
abolir o legado simbólico. Também era óbvio que essas intenções
dos pais, furibundas e pouco justificadas, durariam apenas um dia.
Mesmo assim, elas eram reveladoras: pareciam ser o modelo do
comportamento de Deus com Jó,
na Bíblia (para não falar da loucura do rei Lear de Shakespeare).
Um belo dia, por provocação satânica, Deus suspeitou que Jó fosse devoto só pelos benefícios que o
Criador lhe outorgava. E lhe tirou
tudo. Claro, a desculpa era que
convinha verificar a sinceridade
da fé e da piedade de Jó.
Mas suspeito que, no caso dos
pais idosos, não se trate de verificar se os filhos repudiados continuariam amando seus genitores.
Há, na fantasia de deserdar no
fim da vida, um verdadeiro ciúme
de quem sobreviverá. A dificuldade de lidar com a hora dos adeus
pode nos entregar a uma espécie
de ódio por aqueles que ficarão
mais um tempo. A ponto, aliás, de
esquecer que eles são a única e tênue garantia de alguma permanência nossa.
Esse sentimento pouco nobre
existe sempre nos pais e, pudicamente esquecido, é uma das causas de muitos desentendimentos
entre gerações. No ocaso da vida,
ele se torna mais furioso.
Os filhos, em geral, são menos
pacientes que Jó. Descobrem-se
odiados, e só lhes sobra desejar
que os pais saiam mesmo de cena
e os deixem viver em paz. Assim,
tristemente, ao redor da mesa natalina, cada geração, por um instante, pode desejar a morte da
outra. É paradoxal, pois cada geração deve à outra sua vida: os
pais devem aos filhos sua possível
continuidade no mundo, e os filhos devem aos pais, bem ou mal,
o que eles são.
Nas próprias palavras de um
dos feridos das festas, a verdadeira punição imposta pela ameaça
ciumenta dos pais não é o repúdio, mas a reação de ódio que ele
provoca nos filhos. Pois essa reação os priva de uma última chance de amar seus pais.
Moral da história: para sermos
pais, importa aceitar que somos
mortais.
ccalligari@uol.com.br
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