São Paulo, domingo, 08 de janeiro de 2006

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DRAMA


Filmado em 1963, "Paixões que Alucinam" retrata loucura coletiva da América

Aspecto de "colagem" pontua filme mítico de Samuel Fuller

CÁSSIO STARLING CARLOS
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

"A quem Deus quer destruir, primeiro o enlouquece." A epígrafe de Eurípides não destoa do programa de Samuel Fuller neste "Paixões que Alucinam", filme mítico e praticamente invisível antes deste lançamento em DVD.
Pois a antiga "hubris" grega nada perdeu de seu vigor na história de Johnny, um repórter pronto a se internar num hospício em busca da verdade sobre um assassinato cometido ali dentro, mas cuja verdadeira ambição é conquistar a glória de um Prêmio Pulitzer. Como a repetir o mote "quem tudo quer tudo perde", Fuller já põe o espectador de sobreaviso desde a citação de Eurípides.
Os corredores do hospício (o tal "Shock Corridor" do mal traduzido título) servem de rua e de palco para Fuller demonstrar sua visão ultrapessimista daquela América de 1963, assombrada por fantasmas externos (a Guerra Fria) e internos (o racismo) e nada muito distante desta que conhecemos hoje.
Por esses corredores, mais do que loucos, transitam loucuras: a do veterano da Guerra da Coréia considerado um traidor, a do negro tomado pelos valores de seus perseguidores e que lança um programa de extermínio racista secreto chamado Ku Klux Klan (numa cena espetacular); um físico agraciado com o Nobel e perturbado pela participação no desenvolvimento da bomba atômica. Loucuras, sim, mas nunca estritamente pessoais. Antes, loucuras de uma nação, coletivas e, por isso mesmo, fora de qualquer controle.
Fuller foi acusado muitas vezes de ser um protofascista, de estimular os baixos instintos das platéias com suas histórias em que a violência se conjuga com uma certa "imoralidade" do seu ponto de vista. Herdeiro das histórias policiais dos filmes "noir", povoadas de personalidades dominadas pelos chamado "lado escuro da alma", Fuller -ao lado de Robert Aldrich, um diretor da mesma família mental- trouxe para o cinema americano dos anos 50 um contraponto às ficções edulcoradas de Hollywood.
Para mostrar esses outros pontos de vista, tais diretores renovaram esteticamente a forma de narrar, com o uso de recursos expressivos incomuns. "Paixões que Alucinam" é um tratado nesse sentido. Todo em interiores, o filme explora seu tema por meio de uma impressionante fotografia em preto-e-branco de contraste duro e seco, cortes abruptos, closes insólitos e inserção de seqüências de delírio em cores e em outra textura, que dão um aspecto de colagem, de um improviso improvável em comparação com o cinemascope liso dominante na Hollywood da época.
Essas invenções formais, que há décadas se tornaram clichês nas mãos dos fazedores de videoclipes, em sua origem denotavam extrema violência para o espectador, e sua influência foi em seguida assimilada por cineastas promotores da renovação das formas tradicionais (tanto pelos modernistas, como os da nouvelle vague francesa, quanto pelos jovens americanos surgidos em fins dos anos 60).
A influência dessa independência em relação aos cânones pode ser conferida hoje em diretores como Scorsese e Tarantino, que vêem em Fuller o cineasta da alma em pedaços e o cultuam como um autêntico pai espiritual.


Paixões que Alucinam
    
Direção: Samuel Fuller

Distribuidora: Aurora Filmes; R$ 35


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