São Paulo, sábado, 08 de janeiro de 2011

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CRÍTICA ROMANCE

Yu Hua comove com belo enredo picaresco

Autor chinês consegue combinar sentimentalismo, violência e humor em "Irmãos", que sai agora no Brasil


O LIVRO CONSEGUE SER COMOVENTE COMO UM GRANDE ROMANCE DE AMOR ROMÂNTICO, CRUEL COMO RARAMENTE SABE SER A LITERATURA OCIDENTAL E HILARIANTE


ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O herói da novela tradicional picaresca, que sobrevive no limite da miséria e usa todo tipo de expediente para ascender no meio hostil, parece estar se tornando o mais bem-sucedido modelo de anti-herói do romance atual.
Trata-se de um modelo ampliado, pois, como em "Solar", de Ian McEwan, até um vencedor de prêmio Nobel pode se ver reduzido ao papel de malandro inescrupuloso em luta contra eventos adversos em série.
No entanto, a personagem do pícaro de hoje parece se adaptar de maneira especialmente verossímil ao habitat dos países emergentes, no qual o crescimento vertiginoso da riqueza e a rápida mobilidade social estão articulados a uma desigualdade brutal, à ineficácia jurídica dos direitos, ao empreendedorismo inescrupuloso e ao paternalismo político, autoritário e golpista.

PÍCARO AMPLIADO
O cineasta-publicitário fajuto de "Pornopopeia", de autoria de Reinaldo Moraes, lutando na desflor da idade para sustentar as drogas, o sexo e, enfim, a sua própria vida, se encaixa bem nesse tipo de pícaro ampliado.
Na Índia, um exemplo do gênero é o ótimo "O Tigre Branco", romance de estreia de Aravind Adiga no qual um egresso das baixas castas do interior se torna um bem-sucedido empresário global dos transportes urbanos, autorizando-se a dar conselhos de gestão progressista a um mandatário chinês.
Mas a China, claro, conta ela mesma com um mestre do gênero, Yu Hua (1960), cujo belo "Irmãos" (2005) acaba de sair no Brasil.
O livro consegue ser comovente como um grande romance de amor romântico, cruel como raramente sabe ser a literatura ocidental, e hilariante a ponto de ser arriscado lê-lo em público, tantas as gargalhadas que a história arranca. Os três aspectos -sentimental, violento e humorístico- são magistralmente cerzidos ao longo do seu andamento, de modo que a disposição sequencial das ações do livro é, talvez, a sua maior proeza.
Para dar uma ideia rápida e aproximada do romance, pode-se afirmar que o seu aspecto mais comovente advém da aplicação original da velha tópica do amor de dois irmãos pela mesma mulher.
O seu aspecto violento se deve sobretudo à transposição das lutas políticas da China comunista para os espancamentos particulares. O mais impressionante deles é o linchamento do pai dos dois garotos, cujo cenário deprimente é uma lanchonete à frente da rodoviária da cidade.
O pai boníssimo, professor da escola local, é humilhado e morto por conta dos famigerados expurgos de Mao Tse-tung, durante a chamada Revolução "Cultural", em meados dos anos 1960.
O passo em que os meninos encontram o cadáver do pai e nem sequer podem reconhecê-lo é contundente, efeito de uma rara mistura de comoção e frieza.
Já o aspecto mais engraçado do livro fica por conta das façanhas pornocapitalistas do irmão sacana, que se aproveita das reformas de Deng Xiaoping, na década seguinte, e se torna um dos magnatas da China contemporânea.

BATATINHAS FRITAS
Mas, ao vencedor, batatinhas fritas -no máximo! Liquidados os valores tradicionais pela revolução, liquidada a revolução pelas lutas de poder dentro do Estado, liquidado o Estado pelas negociatas da gestão, traduzidas, por sua vez, em indigência afetiva e intelectual, onde mais buscar a fraternidade bestamente perdida?
Para Yu Hua, só mesmo no espaço alienígena. Por fim, apenas se lamentar que a tradução do romance tenha sido feita a partir do inglês e não diretamente do mandarim.
Triste homologia: até quando, no Brasil, será preciso recorrer a esse expediente subdesenvolvido?

ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária na Unicamp

IRMÃOS

AUTOR Yu Hua
EDITORA Companhia das Letras
TRADUÇÃO Donaldson M. Garschagen
QUANTO R$ 64 (632 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo


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