São Paulo, sexta, 8 de janeiro de 1999

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Notícia de Pau Vermelho

CARLOS HEITOR CONY

do Conselho Editorial

Viajante que acaba de chegar de Pau Vermelho convidou-me para jantar. Estranhei as duas coisas: o convite e o fato de ele ter chegado de um lugar do qual nunca tinha ouvido falar. Mesmo assim, nada tendo a fazer numa dessas noites de calor e tédio, lá fui eu degustar uma lagosta grelhada e as novidades que ele trazia, fosse lá de onde fosse. Se Paris vale uma missa, uma boa lagosta grelhada com molho de manteiga queimada vale notícias até de Pirapora.
Fiquei sabendo que, naquele país, o grande perigo da situação atual reside no fato de estarem todos do mesmo lado -coisa rara na história de Pau Vermelho, onde se discute até mesmo a confiabilidade dos cemitérios. Numa terra em que há cemitérios que não merecem a confiança de seus habitantes, os políticos e governantes são suspeitos de corrupção até mesmo quando dizem "bom dia" ou aprovam moção de solidariedade aos desabrigados de um terremoto na Tailândia.
Daí a perplexidade que inquieta os analistas dos fastos pauvermelhenses. Todos agora concordam com as reformas de que o país necessita. Sem elas, a fome, a peste e a guerra devastarão montes e vales do imenso e verdejante território que o hino local considera o mais dadivoso da face da Terra.
E para manter bem viva a chama reformista, os liberais se aliam aos conservadores, e os conservadores, conservando a cara de pau própria do ofício, admitem liberalidades no orçamento nacional desde que em proveito das reformas.
O presidente da República é um intelectual arejado de idéias -pois não tem idéia alguma a respeito de nada, daí que tudo o que pensa e faz é arejadíssimo. Torna-se precioso e útil a todas as manobras arquitetadas pela infatigável classe dos fazedores de manobras em Pau Vermelho. Qualquer esquema que se faça para tudo continuar como antes, havendo ou não reformas, o primeiro aliado natural a surgir nas especulações é o próprio presidente da República. Desde que lhe garantam a continuidade no poder, ele topa qualquer esquema e se empenha em qualquer reforma.
As Forças Armadas mantêm a ordem pública e a paz espiritual do povo. Há em Pau Vermelho diversas forças: as Armadas propriamente ditas, as Ocultas e as Vivas da Nacionalidade. As Forças Vivas da Nacionalidade incluem os parlamentares, os intelectuais, o alto clero, as donas de casa e as associações de pais de família. As Ocultas de tempo em tempo defenestram um presidente.
É por meio da imprensa que os chefes militares, os políticos, os economistas e os sindicatos sabem de que lado estão. Isso se deve à pujança e ao tirocínio dos formadores de opinião, que são muitos, mas não bastantes em Pau Vermelho. E como a opinião tende a ser uma só, todos se dão por satisfeitos porque os bem informados não se diferenciam dos mal informados, e todos sabem de tudo, mas só publicam o que interessa ao futuro e à glória do país. Não houvesse imprensa livre em Pau Vermelho, a confusão seria bem maior, pois ninguém saberia de que lado realmente está.
E, quando a confusão ameaça aumentar, falam em caos. Aí todo mundo se alia novamente, e os reacionários viram revolucionários, e os revolucionários se transformam em reacionários. Graças a Deus e a um famoso acadêmico responsável pelo dicionário oficial do país, ninguém liga muito para as palavras em Pau Vermelho.
Assim, pelo menos a cada mês são praticadas as famosas crises que aumentam os impulsos telefônicos, as informações privilegiadas e a expectativa de novas e virulentas reformas. A classe política, os empresários, os corretores da Bolsa de Valores e os jornalistas entram em vigília cívica.
Vigília cívica é uma noitada com notícias plantadas, boatos tecnicamente espalhados, apostas sobre os escores das votações no Congresso e, como ninguém é de ferro, algum uísque e pedaços triangulares de pizza. No fundo, resume-se a um esporte muito bem praticado pelos profissionais do setor, pois todos acabam ganhando um salário a mais, a título de horas extras.
Aliás, todas as horas tendem a ser extras em Pau Vermelho, pois tudo que ali acontece de tal forma é extraordinário que não existem horas ordinárias, a não ser as dedicadas aos comunicados oficiais do porta- voz, que ordinariamente garante que nada de extraordinário ocorre no pais.
Os técnicos, os economistas, os maiores amigos do presidente (todos os amigos do presidente têm em comum o fato de serem os maiores) e os colunistas aliados são considerados a parte sadia da nação. Eles explicam que tudo vai bem e provam por a mais bê que o país tende à superação dos entraves que obstaculizam seu progresso.
Daí que todo mundo tende mesmo é à riqueza em Pau Vermelho, pois o rico de hoje será mais rico amanhã, e o pobre de hoje, ficando mais pobre a cada dia que passa, aumenta consideravelmente a riqueza dos ricos, curiosa operação que em Pau Vermelho chamam de "distribuição de renda".
Então chega a noite, e aí o país progride: aumenta a população, aumenta o débito fiscal, e aumenta a dívida externa.



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