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FORNADA DO MILÊNIO
"Brave New Millenium"
GERALD THOMAS
de West Cornwall, Connecticut
Fui convidado, junto com
mais 20 artistas de todas as partes do mundo, para passar o
Ano Novo conversando. "Conversando sobre o quê?", perguntei, assim que a voz gentil atendeu o telefone.
"Conversando sobre tudo", dizia ela, rindo do meu tom desconfiado. "Conversando sobre
suas atividades criativas, passadas, presentes e futuras, seus
sonhos, angústias... obstáculos.... apreensões... Ah, e ouvindo também. Ouvindo muito!",
completava, num tom de sedução inacreditável.
"O lugar do encontro é uma
mansão idílica, longe de tudo e
de todos, cercada de neve por
todos os lados, com comidas deliciosas, acomodações confortabilíssimas", continuava a voz
suave da anfitriã.
"Isso não é, por acaso, um remake de "Anjo Exterminador',
de Luis Buñuel, em que um grupo de pessoas se vê, subitamente, aprisionado... incapaz de
sair?", perguntei, ainda desconfiadíssimo.
"Claro que não! Que idéia!!!",
ela respondia, rindo. "Vai ser
divertido. Venha!" Botei o carro
na estrada e fui. E, de certa forma, fui aliviado, sabendo que
não iria ter que passar mais um
réveillon segurando aquela taça de champanhe (bebida que
odeio!), espremido entre grupos
de estranhos histéricos, aos pulos, gritos e abraços, ao bater da
meia-noite.
O convite listava os potencias
participantes e, apesar de não
conhecer grande parte deles, fui
me acostumando à idéia. Mais
e mais, a proposta deixava de
soar imensamente pretensiosa e
se revelava nada mais que óbvia, civilizada e generosa.
Claro! Estamos todos meio
perdidos mesmo! Nossos rumos
e nossas artes foram perdendo
sua relevância, foram sendo sufocados pelo processo de crescente cinismo e exaustão de
uma sociedade bombardeada,
ininterruptamente, por factóides sensacionalistas e, na maioria das vezes, deliberadamente
mentirosos e fabricados.
Claro! O que melhor que conversar, expor e ouvir nessa reta
final (talvez fosse melhor dizer
"curva final"), de encerramento
do milênio? O que melhor do
que conversar com artistas do
mundo todo, de todas as tendências, todos igualmente perplexos pela total falta de uma
resposta ou reação artística à
altura das tantas, tão velozes e
tão complexas mudanças desse
"bravo novo mundo", globalizado, clonável, sem memória e
cada vez mais "ocupado" pelos
bancos?
Conhecendo o passado instigante dos idealizadores e patrocinadores desse evento, eu pressentia que grandes iluminações
pudessem surgir nesses dois
dias. Eles são os mesmos que,
durante décadas, "produziam"
-numa galeria de arte do Soho- a maratona de leitura do
livro hilário de Gertrude Stein,
"The Making of Americans". A
maratona começava na manhã
do dia 31 de dezembro e terminava na noite de 1º de janeiro,
contando com a presença dos
mais ilustres "papas" da avant-
garde nova-iorquina, como
Andy Warhol, John Cage, Merce Cunningham, Robert Ashley,
Susan Sontag e Robert Rauschenberg, todos lendo (alguns
mal e porcamente), enquanto
nós, espectadores, deitávamos
no chão e delirávamos com a
prosa cíclica e obsessivamente
repetitiva de Stein.
Mas esse evento acabou faz
anos. Depois de algumas horas
na estrada, e com o mapa na
mão, finalmente encontro a casa. Dentro dela, artistas vindos
de lugares tão distantes quando
a Rússia, Japão e Argentina estão espalhados pelos vários sofás e cadeiras, ou sentados no
chão, buscando um lugar perto
da lareira.
Ninguém dá um piu. O silêncio sepulcral é tão constrangedor como ele é representativo
da total e absoluta solidão dos
nossos imensos egos. "Que roubada!", pensei, enquanto ia me
aproximando de um dos grandes nomes do mundo da dança-
teatro (ou teatro-dança, sei lá).
Respirei fundo e tomei coragem: "Virou uma fraude esse
teatro-dança, não virou?", lancei logo de cara, para quebrar,
de vez, o gelo. "O que tenho notado é que esses grupelhos que
andam por aí se escondem atrás
dessa categoria por não serem
treinados em dança e tampouco
conhecerem as regras básicas do
teatro", continuei.
Para minha total surpresa, os
comentários foram bem recebidos. Com uma simpatia inesperada, ela respondeu: "Estou
percebendo isso há anos! O teatro-dança acabou acomodando
todos aqueles que eram rejeitados tanto pela dança quanto
pelo teatro...", ela ponderava,
séria, sua testa enrugada enquanto praticamente "sugava"
seu cigarro.
"Mas como dizer isso? Como
expor isso com essa franqueza,
sem que possa parecer ciúme,
inveja ou possessividade?", continuava ela, entusiasmada. O
gelo, dentro da casa, estava começando a derreter. Com o passar das horas, tudo mudou. Pequenos núcleos se conglomeravam pelos cantos e debatiam,
apaixonadamente.
Um artista plástico da Rússia
me explicava que, passados dez
anos desde a perestroika, seu
país se sentia sem pai nem mãe.
"Caiu tudo! Imagine! Todos os
nossos valores, todas as crenças
e estéticas, tudo no chão, em cacos!", falava ele num inglês precário, deixando que todos vissem que quase não tinha nenhum dente na boca.
"É só dinheiro! Toda a ganância reprimida por 70 anos de ostensiva manipulação... E o que
somos hoje? Os mais violentos,
os mais descrentes. Somos os
gângsteres da modernidade! Viramos os Al Capones do mundo!", dizia ele, com gestos enormes.
Um videomaker da Sérvia o
interrompeu e, enumerando fatos históricos, afirmava que a
verdadeira arte nasceria desses
momentos caóticos. "Não há interesse nenhum no que temos a
dizer. Mesmo rebeldes, ainda
somo associados à voz da verdade", respondia o russo.
Um cineasta inglês parecia
concordar com ele: "A Internet
desgovernou os focos que, antes,
as artes proviam. Agora é cada
um por si!", dizia ele, enquanto
um compositor americano do
nosso lado, quase aos prantos,
explicava a um polonês que "o
tempo em que o compositor sentava para compor porque tinha
algo a dizer acabou! Agora ele é
chamado por Hollywood e tem
poucas semanas pra entregar o
som que eles querem ouvir! São
os empresários que nos dominam. Viramos um mero fundo
musical pra tornar mais
atraente o barulho das moedas
caindo em seus cofres!".
Estávamos nos aproximando
da meia-noite. Uma espécie de
silêncio mórbido voltava a tomar conta do lugar. Uma espanhola mencionou o filme de Roberto Benigni, "A Vida É Bela",
e, de repente, todos começaram
a aplaudir, freneticamente.
"Eu amei esse filme", eu disse,
confessando já tê-lo visto três
vezes. "Então você entendeu a
"mensagem' do Benigni?", perguntava ela. "Mensagem? Como assim, mensagem?", indaguei, meio perplexo.
"A mensagem de que o otimismo é a única arma que temos
para combater as grandes tragédias humanas!" Bem, faltavam dois minutos para a meia-
noite e todos olharam fixo para
o relógio na parede.
No exato momento em que os
ponteiros se encobriam, a voz
sóbria de um jovem escritor alemão surgiu de uma das extremidades da sala, propondo um
brinde: "Quero propor que nós
aqui adotemos a postura mais
direta, mais digna e mais forte;
a única e verdadeira resposta
para esse mundo desinteressado e fútil. Proponho que fiquemos em silêncio por uma década inteira. Proponho que nossas
vozes se calem, até que elas desenvolvam um novo vocabulário! O verdadeiro artista terá
que se separar de sua arte!".
Sua proposta foi recebida com
certo humor. Afinal, não estávamos lá para "aderir" a causa
alguma e nem fundar o Clube
dos Mudos por Opção. Estávamos lá para tentar entender,
por meio de conversas intensas,
como é que a arte estava lidando com as drásticas mudanças
nos valores fundamentais da
sociedade. Estávamos lá para
nos certificarmos de que as nossas desilusões e impotências
não eram fruto de nossos egos
derrotados somente.
Estávamos lá para tentar visualizar o inimigo, dar alguma
forma real para ele. Conseguimos? Claro que não. Mas fomos
dormir mais intranquilos do
que nunca, certos de que o próximo milênio não nos transformara num mero grupo de contempladores passivos.
²
E-mail: geraldthomas@uol.com.br
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