São Paulo, sexta, 8 de janeiro de 1999

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FORNADA DO MILÊNIO
"Brave New Millenium"

GERALD THOMAS
de West Cornwall, Connecticut

Fui convidado, junto com mais 20 artistas de todas as partes do mundo, para passar o Ano Novo conversando. "Conversando sobre o quê?", perguntei, assim que a voz gentil atendeu o telefone.
"Conversando sobre tudo", dizia ela, rindo do meu tom desconfiado. "Conversando sobre suas atividades criativas, passadas, presentes e futuras, seus sonhos, angústias... obstáculos.... apreensões... Ah, e ouvindo também. Ouvindo muito!", completava, num tom de sedução inacreditável.
"O lugar do encontro é uma mansão idílica, longe de tudo e de todos, cercada de neve por todos os lados, com comidas deliciosas, acomodações confortabilíssimas", continuava a voz suave da anfitriã.
"Isso não é, por acaso, um remake de "Anjo Exterminador', de Luis Buñuel, em que um grupo de pessoas se vê, subitamente, aprisionado... incapaz de sair?", perguntei, ainda desconfiadíssimo.
"Claro que não! Que idéia!!!", ela respondia, rindo. "Vai ser divertido. Venha!" Botei o carro na estrada e fui. E, de certa forma, fui aliviado, sabendo que não iria ter que passar mais um réveillon segurando aquela taça de champanhe (bebida que odeio!), espremido entre grupos de estranhos histéricos, aos pulos, gritos e abraços, ao bater da meia-noite.
O convite listava os potencias participantes e, apesar de não conhecer grande parte deles, fui me acostumando à idéia. Mais e mais, a proposta deixava de soar imensamente pretensiosa e se revelava nada mais que óbvia, civilizada e generosa.
Claro! Estamos todos meio perdidos mesmo! Nossos rumos e nossas artes foram perdendo sua relevância, foram sendo sufocados pelo processo de crescente cinismo e exaustão de uma sociedade bombardeada, ininterruptamente, por factóides sensacionalistas e, na maioria das vezes, deliberadamente mentirosos e fabricados.
Claro! O que melhor que conversar, expor e ouvir nessa reta final (talvez fosse melhor dizer "curva final"), de encerramento do milênio? O que melhor do que conversar com artistas do mundo todo, de todas as tendências, todos igualmente perplexos pela total falta de uma resposta ou reação artística à altura das tantas, tão velozes e tão complexas mudanças desse "bravo novo mundo", globalizado, clonável, sem memória e cada vez mais "ocupado" pelos bancos?
Conhecendo o passado instigante dos idealizadores e patrocinadores desse evento, eu pressentia que grandes iluminações pudessem surgir nesses dois dias. Eles são os mesmos que, durante décadas, "produziam" -numa galeria de arte do Soho- a maratona de leitura do livro hilário de Gertrude Stein, "The Making of Americans". A maratona começava na manhã do dia 31 de dezembro e terminava na noite de 1º de janeiro, contando com a presença dos mais ilustres "papas" da avant- garde nova-iorquina, como Andy Warhol, John Cage, Merce Cunningham, Robert Ashley, Susan Sontag e Robert Rauschenberg, todos lendo (alguns mal e porcamente), enquanto nós, espectadores, deitávamos no chão e delirávamos com a prosa cíclica e obsessivamente repetitiva de Stein.
Mas esse evento acabou faz anos. Depois de algumas horas na estrada, e com o mapa na mão, finalmente encontro a casa. Dentro dela, artistas vindos de lugares tão distantes quando a Rússia, Japão e Argentina estão espalhados pelos vários sofás e cadeiras, ou sentados no chão, buscando um lugar perto da lareira.
Ninguém dá um piu. O silêncio sepulcral é tão constrangedor como ele é representativo da total e absoluta solidão dos nossos imensos egos. "Que roubada!", pensei, enquanto ia me aproximando de um dos grandes nomes do mundo da dança- teatro (ou teatro-dança, sei lá).
Respirei fundo e tomei coragem: "Virou uma fraude esse teatro-dança, não virou?", lancei logo de cara, para quebrar, de vez, o gelo. "O que tenho notado é que esses grupelhos que andam por aí se escondem atrás dessa categoria por não serem treinados em dança e tampouco conhecerem as regras básicas do teatro", continuei.
Para minha total surpresa, os comentários foram bem recebidos. Com uma simpatia inesperada, ela respondeu: "Estou percebendo isso há anos! O teatro-dança acabou acomodando todos aqueles que eram rejeitados tanto pela dança quanto pelo teatro...", ela ponderava, séria, sua testa enrugada enquanto praticamente "sugava" seu cigarro.
"Mas como dizer isso? Como expor isso com essa franqueza, sem que possa parecer ciúme, inveja ou possessividade?", continuava ela, entusiasmada. O gelo, dentro da casa, estava começando a derreter. Com o passar das horas, tudo mudou. Pequenos núcleos se conglomeravam pelos cantos e debatiam, apaixonadamente.
Um artista plástico da Rússia me explicava que, passados dez anos desde a perestroika, seu país se sentia sem pai nem mãe. "Caiu tudo! Imagine! Todos os nossos valores, todas as crenças e estéticas, tudo no chão, em cacos!", falava ele num inglês precário, deixando que todos vissem que quase não tinha nenhum dente na boca.
"É só dinheiro! Toda a ganância reprimida por 70 anos de ostensiva manipulação... E o que somos hoje? Os mais violentos, os mais descrentes. Somos os gângsteres da modernidade! Viramos os Al Capones do mundo!", dizia ele, com gestos enormes.
Um videomaker da Sérvia o interrompeu e, enumerando fatos históricos, afirmava que a verdadeira arte nasceria desses momentos caóticos. "Não há interesse nenhum no que temos a dizer. Mesmo rebeldes, ainda somo associados à voz da verdade", respondia o russo.
Um cineasta inglês parecia concordar com ele: "A Internet desgovernou os focos que, antes, as artes proviam. Agora é cada um por si!", dizia ele, enquanto um compositor americano do nosso lado, quase aos prantos, explicava a um polonês que "o tempo em que o compositor sentava para compor porque tinha algo a dizer acabou! Agora ele é chamado por Hollywood e tem poucas semanas pra entregar o som que eles querem ouvir! São os empresários que nos dominam. Viramos um mero fundo musical pra tornar mais atraente o barulho das moedas caindo em seus cofres!".
Estávamos nos aproximando da meia-noite. Uma espécie de silêncio mórbido voltava a tomar conta do lugar. Uma espanhola mencionou o filme de Roberto Benigni, "A Vida É Bela", e, de repente, todos começaram a aplaudir, freneticamente.
"Eu amei esse filme", eu disse, confessando já tê-lo visto três vezes. "Então você entendeu a "mensagem' do Benigni?", perguntava ela. "Mensagem? Como assim, mensagem?", indaguei, meio perplexo.
"A mensagem de que o otimismo é a única arma que temos para combater as grandes tragédias humanas!" Bem, faltavam dois minutos para a meia- noite e todos olharam fixo para o relógio na parede.
No exato momento em que os ponteiros se encobriam, a voz sóbria de um jovem escritor alemão surgiu de uma das extremidades da sala, propondo um brinde: "Quero propor que nós aqui adotemos a postura mais direta, mais digna e mais forte; a única e verdadeira resposta para esse mundo desinteressado e fútil. Proponho que fiquemos em silêncio por uma década inteira. Proponho que nossas vozes se calem, até que elas desenvolvam um novo vocabulário! O verdadeiro artista terá que se separar de sua arte!".
Sua proposta foi recebida com certo humor. Afinal, não estávamos lá para "aderir" a causa alguma e nem fundar o Clube dos Mudos por Opção. Estávamos lá para tentar entender, por meio de conversas intensas, como é que a arte estava lidando com as drásticas mudanças nos valores fundamentais da sociedade. Estávamos lá para nos certificarmos de que as nossas desilusões e impotências não eram fruto de nossos egos derrotados somente.
Estávamos lá para tentar visualizar o inimigo, dar alguma forma real para ele. Conseguimos? Claro que não. Mas fomos dormir mais intranquilos do que nunca, certos de que o próximo milênio não nos transformara num mero grupo de contempladores passivos.
²

E-mail: geraldthomas@uol.com.br



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.