São Paulo, domingo, 08 de fevereiro de 2004

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Publicação das obras completas do artista catalão na Espanha é grande destaque no ano de seu centenário

O Dalí que você não leu

Divulgação
Visitante observa instalação baseada em Salvador Dalí na abertura de mostra sobre o artista catalão, inaugurada em Barcelona na última quarta-feira


CYNARA MENEZES
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Aos 37 anos, Salvador Dalí Domenech (1904-1989) decidiu que já era hora de escrever uma autobiografia. "Normalmente os escritores começam a escrever suas memórias depois de viver sua vida, mas, com meu vício de fazer tudo diferentemente dos demais, achei que era mais inteligente começar escrevendo minhas memórias e vivê-las depois", justificou naquele que seria seu mais famoso livro, "Vida Secreta de Salvador Dalí".
Fanfarrão, erudito, freudiano ao extremo, cômico de provocar gargalhadas, o pouco conhecido estilo do pintor como escritor pode ser apreciado agora na íntegra. A publicação das obras completas de Dalí na Espanha, em espanhol e catalão, é considerada o maior dos acontecimentos em comemoração do seu centenário, em 11 de maio próximo. No Brasil, só dois de seus muitos livros foram publicados até hoje e estão fora de catálogo.
As obras completas terão oito volumes, entre poesia, ensaio, memórias, roteiros de cinema e outros textos, alguns deles inéditos. O primeiro e o segundo volumes estão à venda nas livrarias espanholas. "Foi um trabalho de muita pesquisa, feito ao longo dos últimos quatro anos, mas pela primeira vez se poderá ler tudo o que Dalí escreveu. Era um escritor fascinante", disse à Folha Montse Aguer, diretora do Centro de Estudos Dalinianos em Figueras, terra natal do artista, e coordenadora do Ano Dalí 2004.
Embora tenha se tornado célebre como pintor, o catalão Dalí começou a publicar seus escritos muito jovem, aos 15 anos, em uma revista local. "São poemas de estética simbolista, diferentes do resto", conta Montse Aguer. "É curioso, porque também publica nesse período crônicas em que já falava de Goya, El Greco, Velásquez, Michelangelo, Leonardo, pintores que serão referência em sua vida e obra."
Pouco lida até mesmo pelos espanhóis, a obra literária daliniana não foi, para ela, subvalorizada em virtude das polêmicas posições políticas do pintor, que assumiu simpatia pelo ditador Francisco Franco (1939-1975). "Era apenas desconhecida."
Segundo Aguer, só os primeiros textos de Dalí foram escritos em catalão. Os demais foram traduzidos do francês utilizado pelo artista para o espanhol. Mesmo "Vida Secreta", lançado nos EUA em 1942, havia sido escrito na língua de Balzac e não na de Cervantes.
Seu único romance, "Rostos Ocultos" (1944), à maneira dos folhetins do século 19, acaba de ser relançado na França. Na Espanha, também foi republicado sem os cortes feitos anteriormente nas passagens mais eróticas.
Aguer não hesita em apontar justamente a autobiografia precoce, inédita entre nós, como a melhor das obras, com suas falsas e verdadeiras recordações da infância desde o período intra-uterino, que o artista diz lembrar "como se fosse ontem".
O pintor conta da incrível e divertida coincidência que reuniu na Residência de Estudantes (espécie de associação cultural que também servia de morada), em Madri, na década de 1920, três gênios espanhóis: ele próprio, Federico García Lorca (1898-1936) e Luis Buñuel (1900-83). O roteiro do filme "O Cão Andaluz" (1929), aliás, seria muito mais do catalão do que do aragonês Buñuel.
A briga com os surrealistas, cujo líder André Breton criou o anagrama "Avida Dollars" com o nome do pintor, é exposta em "As Confissões Inconfessáveis de Salvador Dalí", escrito com o jornalista francês André Parinaud e publicado no Brasil em 1976.
Segundo Dalí, o grupo lhe reprochava o fato de não ter se tornado comunista e, mais ainda, por ter colocado as nádegas de Lênin amolecidas no desenho "O Enigma de Guilherme Tell" (1933). Além de fazer cara feia para as referências dalinianas a excrementos. "Compreendi que estava na presença de revolucionários de papel higiênico, enrijecidos por preconceitos pequeno-burgueses", diz Dalí.
Quanto à política: "A defesa dos meus interesses íntimos me parecia tão urgente, autêntica e fundamental quanto a do operariado". E sua decisão final, para Breton, sobre o desejo de ser um surrealista sem censuras: "Se sonhar essa noite que tenho relações amorosas com você, amanhã pintarei nossas melhores posições, com grande profusão de detalhes".
Dalí fizera a opção total pelo onírico, confiando absolutamente no método paranóico-crítico por ele inventado e que consistia em fazer associações as mais estapafúrdias, como o paralelo que estabelece entre a cara encovada de Voltaire e os chifres do rinoceronte. Coisas que só é possível entender lendo-o.
"São indissociáveis: para entender o pintor Dalí completamente é preciso ler Dalí; e é preciso conhecer sua obra pictórica para entender o escritor. São duas facetas muito unidas", diz Montse Aguer.


OBRAS COMPLETAS DE SALVADOR DALÍ. Editora: Destino com Fundação Gala-Salvador Dalí. Quanto: US$ 38, em média (cerca de R$ 112). Onde encomendar: www.livcultura.com.br.


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