São Paulo, quinta-feira, 08 de fevereiro de 2007

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NINA HORTA

Empório dos imigrantes

A casa deu uma lustrada na nossa amável jequeira, mostrando outros mundos

FALÁVAMOS DA Casa Santa Luzia. Do seu fundador, Daniel, português de largas vistas, vindo de Figueiró dos Vinhos. Abriu uma casa de secos e molhados nos moldes europeus, e quem conversa comigo agora é o senhor Jorge, o sobrinho. Lançou-se ao Brasil, como o tio, com uma grande interrogação na cabeça.
Lembra-se do vapor parado no porto, ele esquadrinhando o cais, perdido, até que escutou gritarem pelo sobrinho português que chegava. Logo se enfronhou nos negócios e, em três anos, estava posto em pé de igualdade com os primos, sócio nos mesmos moldes. Era muito justo o fundador Daniel, e a família nunca brigou por ações. A estrutura societária era familiar, mas unida.
Da conversa, pequena que foi, vejo o fundador Daniel como um espírito inteligente, um comerciante de visão, generoso e firme de idéias. Principais preocupações: o freguês, a fidelidade ao fornecedor, a ética nos negócios. Quanto à fidelidade ao fornecedor, ele dá um exemplo. Vieram oferecer açúcar a bom preço. Seu Daniel se recusou. "Nos tempos difíceis, e quando a mercadoria escasseou, foi o açúcar União que nunca nos deixou em falta. Pois é dele que continuaremos comprando, nada de economizar tostões."
Deixou conselhos que ninguém esqueceu: "Procurem sempre ser o número um. E para ser o número um é necessário o olho do dono. Para o empregado, não lhes dói. Por isso, um Santa Luzia só, com controle de qualidade. Trabalhem e invistam sempre naquilo que entendem. Não diversifiquem ao léu."
E o senhor Jorge viu as casas dos Jardins começando a se erguer. "De manhã cedo, sete horas, eu já corria os clientes, de bicicleta, para saber o que precisariam no dia. E, imaginem, numa casa da rua Holanda, eu chegava, abria o portão da frente, a porta da cozinha e da despensa. Via o que faltava, anotava. A dona da casa era organizadíssima, e eu saia de fininho fechando de novo todas as portas atrás de mim. E não estou a contar lorotas..."
"Trabalhávamos muito, esperávamos acabar a sessão das oito do Cine Paulista, para vender o sorvete feito pela minha tia."
Aconteceram outras casas boas em São Paulo. A Casa Prata, o Empório Normal, o Mappin, a Padaria Columbia, o Vilex, mas quem sobreviveu foi o Santa Luzia, com o olhar do dono e a obediência às palavras do patriarca, que se provara bom em negócios.
Álvaro, filho, "batendo de frente com o freguês" (como ele mesmo diz), em meio às prateleiras, seu Jorge lá para cima, e agora a nova geração já entrando na dança. E eu me lembro. Junto dos Jardins, onde moravam os ricaços que faziam sua compra básica no Santa Luzia, estava o bairro de Cerqueira César. E juntavam-se ali todos os imigrantes possíveis. Poloneses, judeus de todos os cantos, alemães, italianos, espanhóis, portugueses, ingleses, cada qual com seus apetites, seu modo de comer, suas saudades, o paladar se misturando num só. O empório queria agradar os clientes. A importação era fácil.
Para mim, a Casa Santa Luzia deu uma lustrada na nossa amável jequeira, mostrando outros mundos.
A classe média européia parcimoniosa e culta nos hábitos alimentares queria pouco, mas do bom e do melhor. Os arenques, as alcaparras, o vinagre, o prosciutto. Nós ensinamos o caju, a goiaba e a banana e aprendemos o bom azeite de oliva. Na fila para pagar, minha filha pediu que eu a esperasse. Precisava de
um caderno. Pensei com meus botões: só investem naquilo que entendem... Ela voltou sem o caderno. Grande família obediente, senti o fantasma do seu Daniel e me lembrei do dia, em que ele já aposentado, no sítio, recebeu as madeiras desmontadas do antigo Santa Luzia.
Chorou.
Obrigado, danke, thank you, grazie tante.


ninahorta@uol.com.br

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