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NINA HORTA
Empório dos imigrantes
A casa deu uma lustrada na nossa amável jequeira, mostrando outros mundos
FALÁVAMOS DA Casa Santa Luzia. Do seu fundador, Daniel,
português de largas vistas,
vindo de Figueiró dos Vinhos. Abriu
uma casa de secos e molhados nos
moldes europeus, e quem conversa
comigo agora é o senhor Jorge, o sobrinho. Lançou-se ao Brasil, como o
tio, com uma grande interrogação
na cabeça.
Lembra-se do vapor parado no
porto, ele esquadrinhando o cais,
perdido, até que escutou gritarem
pelo sobrinho português que chegava. Logo se enfronhou nos negócios
e, em três anos, estava posto em pé
de igualdade com os primos, sócio
nos mesmos moldes. Era muito justo o fundador Daniel, e a família
nunca brigou por ações. A estrutura
societária era familiar, mas unida.
Da conversa, pequena que foi, vejo
o fundador Daniel como um espírito
inteligente, um comerciante de visão, generoso e firme de idéias.
Principais preocupações: o freguês, a fidelidade ao fornecedor, a
ética nos negócios. Quanto à fidelidade ao fornecedor, ele dá um exemplo. Vieram oferecer açúcar a bom
preço. Seu Daniel se recusou. "Nos
tempos difíceis, e quando a mercadoria escasseou, foi o açúcar União
que nunca nos deixou em falta. Pois
é dele que continuaremos comprando, nada de economizar tostões."
Deixou conselhos que ninguém
esqueceu: "Procurem sempre ser o
número um. E para ser o número
um é necessário o olho do dono. Para o empregado, não lhes dói. Por isso, um Santa Luzia só, com controle
de qualidade. Trabalhem e invistam
sempre naquilo que entendem. Não
diversifiquem ao léu."
E o senhor Jorge viu as casas dos
Jardins começando a se erguer. "De
manhã cedo, sete horas, eu já corria
os clientes, de bicicleta, para saber o
que precisariam no dia. E, imaginem, numa casa da rua Holanda, eu
chegava, abria o portão da frente, a
porta da cozinha e da despensa. Via
o que faltava, anotava. A dona da casa era organizadíssima, e eu saia de
fininho fechando de novo todas as
portas atrás de mim. E não estou a
contar lorotas..."
"Trabalhávamos muito, esperávamos acabar a sessão das oito do Cine
Paulista, para vender o sorvete feito
pela minha tia."
Aconteceram outras casas boas
em São Paulo. A Casa Prata, o Empório Normal, o Mappin, a Padaria
Columbia, o Vilex, mas quem sobreviveu foi o Santa Luzia, com o olhar
do dono e a obediência às palavras
do patriarca, que se provara bom em
negócios.
Álvaro, filho, "batendo de frente
com o freguês" (como ele mesmo
diz), em meio às prateleiras, seu Jorge lá para cima, e agora a nova geração já entrando na dança.
E eu me lembro. Junto dos Jardins, onde moravam os ricaços que
faziam sua compra básica no Santa
Luzia, estava o bairro de Cerqueira
César. E juntavam-se ali todos os
imigrantes possíveis. Poloneses, judeus de todos os cantos, alemães,
italianos, espanhóis, portugueses,
ingleses, cada qual com seus apetites, seu modo de comer, suas saudades, o paladar se misturando num
só. O empório queria agradar os
clientes. A importação era fácil.
Para mim, a Casa Santa Luzia deu
uma lustrada na nossa amável jequeira, mostrando outros mundos.
A classe média européia parcimoniosa e culta nos hábitos alimentares queria pouco, mas do bom e do
melhor. Os arenques, as alcaparras,
o vinagre, o prosciutto. Nós ensinamos o caju, a goiaba e a banana e
aprendemos o bom azeite de oliva.
Na fila para pagar, minha filha pediu que eu a esperasse. Precisava de
um caderno. Pensei com meus botões: só investem naquilo que entendem... Ela voltou sem o caderno.
Grande família obediente, senti o
fantasma do seu Daniel e me lembrei do dia, em que ele já aposentado, no sítio, recebeu as madeiras
desmontadas do antigo Santa Luzia.
Chorou.
Obrigado, danke, thank you, grazie tante.
ninahorta@uol.com.br
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