São Paulo, domingo, 08 de fevereiro de 2009

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A Carmen que o Brasil não conhece

Carmen Miranda, que faria 100 anos amanhã, fixou o jeito de cantar o samba e a marchinha e gravou quase 300 músicas no Brasil, mas o país ainda só a conhece por seus turbantes e filmes de Hollywood

Divulgação
Carmen Miranda no início da carreira de cantora, em 1930, no Rio

RUY CASTRO
COLUNISTA DA FOLHA

De setembro de 1929 a maio de 1939 (com direito a uma curta prorrogação em setembro de 1940), Carmen Miranda gravou 281 músicas no Brasil, em discos avulsos de 78 rpm -uma música por face, como se dizia. Se na época já existisse o álbum convencional de 12 faixas, isso equivaleria a 23 LPs -mais de dois por ano, durante dez anos. Se se fizer os cálculos baseados nas avaras possibilidades dos 78s, Carmen lançou uma média de 2,5 músicas por mês, todo mês, chovesse ou fizesse sol, durante aqueles dez anos. Nenhuma outra cantora brasileira, antes, durante ou depois, chegou perto de tais números -até hoje.
Noventa por cento desses discos eram de gêneros musicais recém-criados e que ainda estavam se estabelecendo no começo dos anos 30, como o samba -em diversas variações: rasgado, de Carnaval, de breque, samba-choro, samba-jongo, samba-batuque- e a marchinha -idem: de Carnaval, junina, natalina. Esses ritmos não nasceram prontos e acabados. Foram se definindo à medida que eram produzidos e gravados e, nesse caso, a participação de Carmen, cantando-os à sua maneira, foi fundamental para a sua fixação.
Em pouco tempo, muitos autores de sambas e marchinhas começaram a compor explicitamente para a voz e o estilo -a "bossa"- de Carmen, o que a tornou não apenas o veículo ideal para os ritmos, mas, de certa forma, sua inspiradora. Esses compositores e letristas eram garotos, todos menores de 30 anos em 1930, recém-chegados à cena musical carioca, vindos de Minas Gerais, da Bahia, do Estado do Rio ou dos subúrbios cariocas mais distantes: Ary Barroso, André Filho, Lamartine Babo, a dupla João de Barro e Alberto Ribeiro, Assis Valente, Ataulpho Alves, Synval Silva, Alcyr Pires Vermelho, Herivelto Martins, Dorival Caymmi. Alguns deles, como Ataulpho, Synval, Alcyr e Caymmi, tiveram em Carmen sua primeiríssima intérprete; outros, como Ary, André ou Assis, tiveram nela sua principal ou mais frequente intérprete. É difícil imaginar esses autores nas vozes de Gesy Barbosa, Olga Praguer Coelho ou da própria Aracy Côrtes, que eram as cantoras já estabelecidas quando Carmen apareceu -todas formidáveis a seu modo, mas refinadas demais para o que o samba exigia. Carmen, por sua vez, já nasceu falando a língua e a linguagem deles.

Drible de língua
Ela levou as ruas para a música popular, liquidando com o sotaque lírico, de bibelô, que marcava suas antecessoras. E que ruas eram essas? As da Lapa, onde foi criada, dos seis aos 16 anos, entre 1915 e 1925, um caldeirão onde se cozinhavam políticos, empresários, ministros de Estado, turistas, escritores, jornalistas, boêmios e malandros, entre a fauna que efetivamente trabalhava ali: policiais, garçons, cozinheiros, engraxates, motoristas de táxi, leões-de-chácara, cafetões, prostitutas. Na Lapa nasciam as gírias, os duplos sentidos, as corruptelas e outras modernidades que fariam da nova língua cantada algo a anos-luz das lindas valsas e modinhas de Freire Jr. e Bastos Tigre que predominavam até bem pouco.
Saíam as pálidas morenas, os luares prateados e as velas em silhueta à beira-mar para dar lugar a "Já me disseram que você andou pintando o sete/ Andou chupando muita uva e até de caminhão/ Agora anda dizendo que está de apendicite / Vai entrar no canivete, vai fazer operação" ("Uva de Caminhão", por Assis Valente, que Carmen gravou em 1939). Mas, mais do que isto, Carmen levou um jeito novo de cantar -esperto, moleque, malicioso- em oposição ao "sentimento" ou "sinceridade" dos outros cantores. Com um drible de língua, podia-se ouvi-la sublinhar certas palavras ou extrair conteúdos insuspeitos de um verso.

Obras-primas
Nesse sentido, pode ter sido tudo, menos uma cantora romântica ou dramática -lacuna que só se preencheria em 1935, quando surgisse Aracy de Almeida. Equivale a dizer que, por cinco anos, Carmen reinou sozinha, e a única cantora a lhe fazer alguma sombra era sua irmã Aurora -mas uma sombra benigna, porque as duas viviam se apresentando juntas e até trocavam repertório. Considerando-se que tudo que Carmen gravou no Brasil foi em primeira mão -ou seja, legítimas criações suas como intérprete-, devemos a ela, como se não bastasse, uma quantidade de obras-primas do patrimônio musical brasileiro.

Mas o poder da máquina é arrasador. Quando Carmen foi trabalhar nos Estados Unidos, teve de deixar para trás seu grande instrumento de trabalho -as sutilezas da língua portuguesa- e trocá-lo por sua graça como dançarina e comediante e limitar seu repertório a músicas mais simples, como "Mamãe Eu Quero" e "Touradas em Madri". Em Hollywood, por imposição da indústria, os turbantes, os balangandãs e as saias só fizeram crescer. Nada de mal nisso -mas esta foi a Carmen que o mundo passou a conhecer e que, ironicamente, o Brasil também pôs no lugar da cantora que tinha quebrado tudo.

RUY CASTRO é autor de "Carmen - Uma Biografia" (editora Companhia das Letras)


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