São Paulo, quarta-feira, 08 de março de 2000


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MARCELO COELHO
Não há chave para entrar em Malkovich

Talvez seja de mau gosto querer interpretar um filme tão divertido, tão graciosamente complicado e escorregadio como "Quero Ser John Malkovich", de Spike Jonze. Uma de suas personagens, aliás, nos adverte contra essa tentação.
Trata-se de Lotte (Cameron Diaz), cujo cotidiano resumia-se a tratar de macacos, papagaios e iguanas doentes, até que o marido descobre uma portinhola capaz de conduzir qualquer pessoa ao interior da consciência de John Malkovich. Lotte passa pela portinhola; durante 15 minutos, vê o mundo pelos olhos do famoso ator.
Entusiasmada com a experiência, Lotte discorre longamente sobre como é ter um pênis e de que modo, afinal, aquela portinhola era o lado feminino, a "vagina" de Malkovich. O efeito de sua teorização é cômico, como quase tudo neste roteiro de Charlie Kaufman.
Muitos chamaram o filme de "surrealista"; mas "Quero Ser John Malkovich" é bem mais uma comédia fantástica do que algo na linha de Buñuel e Dalí.
O filme não está interessado em subverter a lógica ou explorar o inconsciente. Como nas histórias de Borges, trata-se de desenvolver realisticamente os paradoxos que surgem a partir de um pressuposto insólito. Como a história se encaminha de forma rigorosa e plausível, sem chamar a atenção para símbolos e enigmas a cada minuto, o esforço do intérprete se torna deslocado, ridículo.
Do mesmo modo, dizer que "O Processo", de Kafka, no fundo simboliza o pecado original, ou a sociedade burocrática moderna, ou seja lá o que for, é a melhor maneira de não entender nada do livro. Qualquer chave interpretativa serve na fechadura, mas gira em falso.
Até Allan Kardec poderia servir para uma interpretação de "Quero Ser John Malkovich": entrar na pele do ator parece, no final do filme, uma técnica de reencarnação. E os 15 minutos em que cada pessoa fica dentro de Malkovich podem ser uma referência a Andy Warhol e seus "15 minutos de fama".
Essas duas lembranças talvez se juntem numa terceira, a de "O Imortal", de Jorge Luís Borges. Nesse conto, a vida eterna parece ter como preço a dissolução da individualidade; estender a própria existência ao longo do tempo seria o equivalente a perder o próprio eu num infinito de acontecimentos e vivências, não muito diferente da morte... De modo que, se a fama dura 15 minutos, a vida eterna impõe o anonimato.
Chega. Vou ficando parecido com Lotte. Sendo pedante buscar explicações e paralelos, nada melhor do que seguir, por puro prazer, os desencontros, os "loopings" e surpresas do enredo. Mas, se decido ver o filme "ingenuamente", sem me precipitar na procura de seus significados ocultos, há uma ou outra pergunta ingênua, que não posso evitar.
Supondo que a portinhola funcionasse mesmo e que eu pudesse "ser John Malkovich"..., como seria isso? Para saber, durante aqueles minutos, que eu estou sendo Malkovich, eu teria de continuar sendo eu mesmo... Se eu me transformasse integralmente em Malkovich, não traria comigo a menor memória dessa experiência.
Para a coisa dar certo, eu teria apenas de "entrar" em John Malkovich: usar seu corpo, sem ter acesso à sua consciência. Mas aí a coisa perderia a graça.
Não perde a graça para o protagonista, Craig Schwartz (John Cusack), que é um manipulador de marionetes extremamente talentoso.
Aliás, vale a pena ler um texto de Kleist (1777-1811) sobre o teatro de marionetes, editado no Brasil pela Imago, num volume que traz também a novela "A Marquesa de O". Afirma-se, ali, que um boneco mecânico pode ter mais elegância do que um dançarino real.
O paradoxo se explica: sendo inconsciente, o boneco se abandona aos fios que o suspendem do chão, sem se submeter à gravidade; ou, quando se deixa inclinar ou cair, a força de seu peso age sem resistência por todo o corpo, de modo que nenhum de seus movimentos parecerá voluntário.
E tudo o que é gracioso, prossegue Kleist, não pode ter a consciência de que está sendo gracioso; a inconsciência é fundamental. Essa inconsciência, a humanidade tinha no paraíso. Como recuperá-la? Kleist sugere uma hipótese, que aqui não tenho espaço para reproduzir.
John Malkovich tem, como ator, a característica de ser sempre ele mesmo; parece estar sempre no mesmo papel. Mesmo entrando nele, continuamos com nossa consciência também. Perdê-la seria um privilégio equívoco: o de nos transformarmos em marionetes.
Assim, no escritório onde trabalha Craig Schwartz, todas as pessoas se espremem sob um teto baixíssimo, como se aquilo fosse o palco de um espetáculo cujos manipuladores, no andar de cima, não conseguimos ver.
Já estou fazendo interpretações de novo. O problema do filme, entretanto, é exatamente este: ninguém, num mundo de marionetes, é capaz de interpretar coisa alguma; nem mesmo John Malkovich.


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