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MARCELO COELHO
Não há chave para entrar em Malkovich
Talvez seja de mau gosto querer
interpretar um filme tão divertido, tão graciosamente complicado e escorregadio como "Quero
Ser John Malkovich", de Spike
Jonze. Uma de suas personagens,
aliás, nos adverte contra essa tentação.
Trata-se de Lotte (Cameron
Diaz), cujo cotidiano resumia-se a
tratar de macacos, papagaios e
iguanas doentes, até que o marido
descobre uma portinhola capaz
de conduzir qualquer pessoa ao
interior da consciência de John
Malkovich. Lotte passa pela portinhola; durante 15 minutos, vê o
mundo pelos olhos do famoso
ator.
Entusiasmada com a experiência, Lotte discorre longamente sobre como é ter um pênis e de que
modo, afinal, aquela portinhola
era o lado feminino, a "vagina"
de Malkovich. O efeito de sua teorização é cômico, como quase tudo neste roteiro de Charlie Kaufman.
Muitos chamaram o filme de
"surrealista"; mas "Quero Ser
John Malkovich" é bem mais uma
comédia fantástica do que algo na
linha de Buñuel e Dalí.
O filme não está interessado em
subverter a lógica ou explorar o
inconsciente. Como nas histórias
de Borges, trata-se de desenvolver
realisticamente os paradoxos que
surgem a partir de um pressuposto insólito. Como a história se encaminha de forma rigorosa e
plausível, sem chamar a atenção
para símbolos e enigmas a cada
minuto, o esforço do intérprete se
torna deslocado, ridículo.
Do mesmo modo, dizer que "O
Processo", de Kafka, no fundo
simboliza o pecado original, ou a
sociedade burocrática moderna,
ou seja lá o que for, é a melhor
maneira de não entender nada do
livro. Qualquer chave interpretativa serve na fechadura, mas gira
em falso.
Até Allan Kardec poderia servir
para uma interpretação de "Quero Ser John Malkovich": entrar na
pele do ator parece, no final do filme, uma técnica de reencarnação.
E os 15 minutos em que cada pessoa fica dentro de Malkovich podem ser uma referência a Andy
Warhol e seus "15 minutos de fama".
Essas duas lembranças talvez se
juntem numa terceira, a de "O
Imortal", de Jorge Luís Borges.
Nesse conto, a vida eterna parece
ter como preço a dissolução da individualidade; estender a própria
existência ao longo do tempo seria o equivalente a perder o próprio eu num infinito de acontecimentos e vivências, não muito diferente da morte... De modo que,
se a fama dura 15 minutos, a vida
eterna impõe o anonimato.
Chega. Vou ficando parecido
com Lotte. Sendo pedante buscar
explicações e paralelos, nada melhor do que seguir, por puro prazer, os desencontros, os "loopings"
e surpresas do enredo. Mas, se decido ver o filme "ingenuamente",
sem me precipitar na procura de
seus significados ocultos, há uma
ou outra pergunta ingênua, que
não posso evitar.
Supondo que a portinhola funcionasse mesmo e que eu pudesse
"ser John Malkovich"..., como seria isso? Para saber, durante
aqueles minutos, que eu estou
sendo Malkovich, eu teria de continuar sendo eu mesmo... Se eu
me transformasse integralmente
em Malkovich, não traria comigo
a menor memória dessa experiência.
Para a coisa dar certo, eu teria
apenas de "entrar" em John Malkovich: usar seu corpo, sem ter
acesso à sua consciência. Mas aí a
coisa perderia a graça.
Não perde a graça para o protagonista, Craig Schwartz (John
Cusack), que é um manipulador
de marionetes extremamente talentoso.
Aliás, vale a pena ler um texto
de Kleist (1777-1811) sobre o teatro de marionetes, editado no
Brasil pela Imago, num volume
que traz também a novela "A
Marquesa de O". Afirma-se, ali,
que um boneco mecânico pode ter
mais elegância do que um dançarino real.
O paradoxo se explica: sendo
inconsciente, o boneco se abandona aos fios que o suspendem do
chão, sem se submeter à gravidade; ou, quando se deixa inclinar
ou cair, a força de seu peso age
sem resistência por todo o corpo,
de modo que nenhum de seus movimentos parecerá voluntário.
E tudo o que é gracioso, prossegue Kleist, não pode ter a consciência de que está sendo gracioso; a inconsciência é fundamental. Essa inconsciência, a humanidade tinha no paraíso. Como
recuperá-la? Kleist sugere uma
hipótese, que aqui não tenho espaço para reproduzir.
John Malkovich tem, como ator,
a característica de ser sempre ele
mesmo; parece estar sempre no
mesmo papel. Mesmo entrando
nele, continuamos com nossa
consciência também. Perdê-la seria um privilégio equívoco: o de
nos transformarmos em marionetes.
Assim, no escritório onde trabalha Craig Schwartz, todas as pessoas se espremem sob um teto baixíssimo, como se aquilo fosse o
palco de um espetáculo cujos manipuladores, no andar de cima,
não conseguimos ver.
Já estou fazendo interpretações
de novo. O problema do filme, entretanto, é exatamente este: ninguém, num mundo de marionetes, é capaz de interpretar coisa
alguma; nem mesmo John Malkovich.
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