São Paulo, quarta-feira, 08 de março de 2000


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A ENTREVISTA
Arquiteto fala da ética e da cidade no futuro
"O corpo é a razão da arquitetura"

LEDUSHA SPINARDI
Colunista da Folha

Leia a seguir os principais trechos da entrevista de Paulo Mendes da Rocha à Folha.

Folha - A arte tem recorrido ao corpo como uma temática quase universal. Você vê como esse conceito possa influir na arquitetura?
Paulo Mendes da Rocha -
O corpo é a sede da nossa existência desde sempre. Ele mesmo é a narrativa mais completa sobre a presença do homem no universo. Um pedacinho de um corpo pode dizer o quê e quem era a primeira mulher, a nossa mãe, a Lucy, encontrada há pouco tempo. O nosso corpo biológico contém tudo o que chamamos de conhecimento. A influência significativa na arquitetura dessa consciência histórica é também um andamento quase indizível das transformações, das quais somos breves participantes.
O corpo é um discurso. Esse mesmo corpo, fora da biosfera, nas viagens espaciais, já é quase um trambolho. Para expandir a vida humana no universo, quem sabe, teremos de desenhar um outro corpo. O Lelé vai ter muito trabalho com seus maravilhosos laboratórios de ensaios ortopédicos: fabricar anatomias. Mas falando sério: o corpo (e sua existência ética e política) é a razão da arquitetura.

Folha - Quando surgiu, nos anos 60, o computador era usado em arquitetura somente para a representação. Mas a geração mais nova de arquitetos parece usá-lo no processo criativo. Você acha que esse novo ferramental ajuda a produzir uma nova arquitetura? O que você acha de algumas escolas terem praticamente banido o desenho a mão livre e investido na computação gráfica?
Mendes da Rocha -
Prever e prevenir o desastre pode ser o melhor horizonte para os computadores. Uma estrutura calculada para se manter em pé é uma forma de prever o desastre, o desmoronamento. Uma imagem interessante para o recurso da informática, em geral, é a extinção do segredo.
O modo como qualquer menino invade os sistemas diz que está convocada a ética para o mundo futuro como condição da nossa existência no planeta. Mas já as palavras não tinham dono e você pode usá-las como Shakespeare ou num discurso nazista! Essas decisões o computador não sabe assumir.
A mão nunca foi livre, livre é a imaginação. O que está em transformação é o nosso psiquismo, e as máquinas são bem-vindas como instrumentos de linguagens capazes de anunciar, descrever a imaginação, narrar o que se passa na nossa mente.

Folha - Que impacto a possibilidade de trabalhar e ter acesso a serviços em casa pode ter na arquitetura e na cidade?
Mendes da Rocha -
Sempre se trabalhou dentro de casa. O senador diz "nesta casa" e nos navios há uma "casa das máquinas". A casa é o lugar primordial, onde se fabrica o futuro. Assim a cidade será a casa do homem. O planeta é, será a casa matriz. Uma geografia inédita no universo, a cidade como natureza transformada de modo humano. Algo que não havia antes.

Folha - Como fica a dimensão social da arquitetura diante de uma sociedade cada vez mais fragmentada culturalmente?
Mendes da Rocha -
Será que a sociedade pode ser um somatório de fragmentos? A idéia de "sociedade" anda na direção da complexidade e expansão dos horizontes do conhecimento. A consideração de uma infinita complexidade não significa fragmentação. Mesmo uma fragmentação evidente como a escravatura, a política colonial, as guerras, recompõe-se no tempo, com a reconsideração crítica e a construção de um futuro outro, contra a miséria do espírito e do corpo. O futuro não está na fragmentação, mas na complexidade assumida.

Folha - Assim como Calvino escreveu "Seis Propostas para o Próximo Milênio", que tendências você acha que vão sobreviver na arquitetura?
Mendes da Rocha -
Como Calvino, só ele, que é uma beleza. Mas, naquele tom, podia ser: 1) construção da paz; 2) revisão crítica do colonialismo; 3) confundir arte e ciência, técnica e discurso; 4) recompor a visão erótica da vida; 5) considerar que somos uma variante da natureza e construir a cidade para todos; 6) pensar em assumir a responsabilidade pela expansão da vida humana no universo.


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