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RODAPÉ
Fugindo da própria sombra
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
"Em uma passagem dos "Cadernos de Malte Laurids
Brigge", Rilke diz que "os versos
não são sentimentos; são experiências. Para escrever um único
verso, é preciso ter visto muitas cidades, muitos homens e coisas..."
Rilke não quer dizer, entretanto,
que o verso seria a expressão de
uma personalidade rica, capaz de
viver e de ter vivido. As lembranças são necessárias, mas para serem esquecidas, para que nesse
esquecimento, no silêncio de uma
profunda metamorfose, nasça finalmente uma palavra, a primeira
palavra de um verso. Aqui, experiência significa: contato com o
ser, renovação de si mesmo nesse
contato."
Estas palavras, escritas em "O
Espaço Literário", podem servir
como um instantâneo da obra do
escritor francês Maurice Blanchot, que morreu há duas semanas, aos 95 anos. A frase concentra as três dimensões fundamentais de seus livros:
(1) A preocupação em criar uma
escrita absoluta que nomeia o
inominável, que designa um
"contato com o ser" que ultrapassa a experiência cotidiana e seu
recobrimento pelo véu das palavras ordinárias.
(2) A ocultação de qualquer vestígio biográfico como forma de
expor o "ser da linguagem".
(3) A criação de uma poética em
que o processo da escrita e seu
perpétuo auto-exame são a personagem principal, fazendo da crítica um gênero literário.
A densidade abstrata de seus
ensaios e romances fez de Blanchot o porta-voz de um século
que conjugou metalinguagem
com crise do sujeito.
Para além de qualquer relação
de "influência", pode-se encontrar parentescos de Blanchot na
ficção de Marguerite Duras, na
poesia de René Char, na mitologia
de Bataille, no "grau zero da escritura" concebido por Roland Barthes ou na idéia da "morte do homem" que percorre "As Palavras
e as Coisas", de Foucault.
Contudo, esse absoluto literário
e seu contraponto (a invisibilidade pública do escritor) correm o
risco de encobrir o enraizamento
de Blanchot em seu tempo.
Do ponto de vista estritamente
literário, o caráter irredutível da
experiência e de suas representações ("a essência da literatura é
fugir a qualquer determinação essencial") serve como interpretante de um certo tipo de escrita que
erigiu a literatura em contra-discurso, em resistência a toda e
qualquer forma de confinamento
do existir em um fundamento
único (religioso, político, econômico, estético etc.).
Entretanto, tal perspectiva certamente não se aplica à literatura
pré-modernista. Se Blanchot escreveu sobre Sade, Lautréamont
ou Hölderlin, estes aparecem em
sua obra na condição de precursores de Kafka, de Beckett e de si
mesmo. Cada época tem seus mitos, suas obsessões e suas culpas, e
os mitos e obsessões de Blanchot
dizem pouco sobre "a essência da
literatura" de um Stendhal ou de
um Zola.
Suas culpas, porém, dizem muito sobre a nossa história contemporânea. Seria ingênuo considerar os textos de teor fascista e anti-semita que Blanchot publicou nos
anos 30 e 40 como um acidente de
percurso. Um livro como "Maurice Blanchot - Partenaire Invisible"
(Maurice Blanchot - Parceiro Invisível), de Christophe Bident
(Éditions Champ Vallon), por
exemplo, mostra por meio de correspondências e relatos de interlocutores que o escritor construiu
sua obra como um acerto de contas consigo mesmo.
Como interpretar de outra forma a frase "Hoje só tenho pensamentos em relação a Auschwitz",
contida em uma carta ao filósofo
Bernard-Henri Lévy? E qual o
sentido profundo de sua amizade
por Emmanuel Levinas (o pensador judeu da alteridade, da abertura para o Outro)?
Ao adotar o mandamento de
"pensar e agir de tal forma que
Auschwitz jamais se repita", Blanchot não estava de alguma forma
respondendo à condenação de
Adorno ("Escrever um poema
após Auschwitz é um ato bárbaro")? Não era esse o sentido de sua
ocultação pessoal e de sua escrita
sem conteúdo: purgar o passado,
materializando na palavra poética
o lugar de uma ausência?
Talvez Blanchot tenha sido, enfim, como a escultura de Giacometti que inteligentemente ilustra
a capa do livro de Bident: um homem frágil, carcomido, cultivando a invisibilidade para fugir da
própria sombra.
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