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São Paulo, sábado, 08 de março de 2003

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RODAPÉ

Fugindo da própria sombra

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"Em uma passagem dos "Cadernos de Malte Laurids Brigge", Rilke diz que "os versos não são sentimentos; são experiências. Para escrever um único verso, é preciso ter visto muitas cidades, muitos homens e coisas..." Rilke não quer dizer, entretanto, que o verso seria a expressão de uma personalidade rica, capaz de viver e de ter vivido. As lembranças são necessárias, mas para serem esquecidas, para que nesse esquecimento, no silêncio de uma profunda metamorfose, nasça finalmente uma palavra, a primeira palavra de um verso. Aqui, experiência significa: contato com o ser, renovação de si mesmo nesse contato."
Estas palavras, escritas em "O Espaço Literário", podem servir como um instantâneo da obra do escritor francês Maurice Blanchot, que morreu há duas semanas, aos 95 anos. A frase concentra as três dimensões fundamentais de seus livros:
(1) A preocupação em criar uma escrita absoluta que nomeia o inominável, que designa um "contato com o ser" que ultrapassa a experiência cotidiana e seu recobrimento pelo véu das palavras ordinárias.
(2) A ocultação de qualquer vestígio biográfico como forma de expor o "ser da linguagem".
(3) A criação de uma poética em que o processo da escrita e seu perpétuo auto-exame são a personagem principal, fazendo da crítica um gênero literário.
A densidade abstrata de seus ensaios e romances fez de Blanchot o porta-voz de um século que conjugou metalinguagem com crise do sujeito.
Para além de qualquer relação de "influência", pode-se encontrar parentescos de Blanchot na ficção de Marguerite Duras, na poesia de René Char, na mitologia de Bataille, no "grau zero da escritura" concebido por Roland Barthes ou na idéia da "morte do homem" que percorre "As Palavras e as Coisas", de Foucault.
Contudo, esse absoluto literário e seu contraponto (a invisibilidade pública do escritor) correm o risco de encobrir o enraizamento de Blanchot em seu tempo.
Do ponto de vista estritamente literário, o caráter irredutível da experiência e de suas representações ("a essência da literatura é fugir a qualquer determinação essencial") serve como interpretante de um certo tipo de escrita que erigiu a literatura em contra-discurso, em resistência a toda e qualquer forma de confinamento do existir em um fundamento único (religioso, político, econômico, estético etc.).
Entretanto, tal perspectiva certamente não se aplica à literatura pré-modernista. Se Blanchot escreveu sobre Sade, Lautréamont ou Hölderlin, estes aparecem em sua obra na condição de precursores de Kafka, de Beckett e de si mesmo. Cada época tem seus mitos, suas obsessões e suas culpas, e os mitos e obsessões de Blanchot dizem pouco sobre "a essência da literatura" de um Stendhal ou de um Zola.
Suas culpas, porém, dizem muito sobre a nossa história contemporânea. Seria ingênuo considerar os textos de teor fascista e anti-semita que Blanchot publicou nos anos 30 e 40 como um acidente de percurso. Um livro como "Maurice Blanchot - Partenaire Invisible" (Maurice Blanchot - Parceiro Invisível), de Christophe Bident (Éditions Champ Vallon), por exemplo, mostra por meio de correspondências e relatos de interlocutores que o escritor construiu sua obra como um acerto de contas consigo mesmo.
Como interpretar de outra forma a frase "Hoje só tenho pensamentos em relação a Auschwitz", contida em uma carta ao filósofo Bernard-Henri Lévy? E qual o sentido profundo de sua amizade por Emmanuel Levinas (o pensador judeu da alteridade, da abertura para o Outro)?
Ao adotar o mandamento de "pensar e agir de tal forma que Auschwitz jamais se repita", Blanchot não estava de alguma forma respondendo à condenação de Adorno ("Escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro")? Não era esse o sentido de sua ocultação pessoal e de sua escrita sem conteúdo: purgar o passado, materializando na palavra poética o lugar de uma ausência?
Talvez Blanchot tenha sido, enfim, como a escultura de Giacometti que inteligentemente ilustra a capa do livro de Bident: um homem frágil, carcomido, cultivando a invisibilidade para fugir da própria sombra.


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