São Paulo, quarta-feira, 08 de março de 2006

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MARCELO COELHO

Fantasmas dentro de um piano de cauda

Há muitos grupos e subgrupos entre os fãs de música clássica, e a indústria fonográfica até que trata bem a comunidade -de todas, talvez a mais impressionável e mística- dos que admiram os grandes intérpretes do passado. Um violinista legendário, prolongando uma nota entre as pipocas e os estalidos da gravação antiquíssima; um maestro titânico, regendo contra um mar de chiados e tosses preservadas na baquelite; um quarteto de cordas ilustre nos anos 20, como uma assembléia de espectros flutuando numa sessão espírita...
Tenho um pouco esse fetiche. Mas foi lançada no mercado internacional uma caixa com três CDs que pode interessar mais do que simplesmente os adeptos da pura arqueologia musical. É a gravação, não dos concertos, mas de várias aulas públicas -"master classes", como se diz- que o pianista Alfred Cortot (1877-1962) ministrou a seus alunos, já no fim da vida. Grandes obras do repertório pianístico -três baladas de Chopin, a "Partita nš 1" de Bach, cinco sonatas de Beethoven- são apresentadas e discutidas.
Não ouvimos nenhuma peça na íntegra: os CDs não incluem a interpretação dos alunos de Cortot, mas apenas as preleções do mestre depois de cada número, num vaivém entre a exemplificação prática ao piano e os comentários de cunho teórico-literário que, com voz suave e segura, ele dispensa ao microfone.
Claro que em música a "mensagem" de uma obra é coisa muito arbitrária de determinar. Toda sorte de comparações narrativas, de imaginações românticas, pode ser invocada a propósito de determinada passagem musical, e Cortot não as evita: alguns acordes finais numa peça de Chopin devem ser, diz ele, como "as últimas pedras que alguém deixa cair sobre um túmulo".
Mas não se trata apenas de "literatura". São inúmeras as precisões, as nuances de tom e de estilo, que Cortot faz notar ao público, graças a um poder de expressão verbal que nem sempre os grandes músicos possuem. Em determinado "prestissimo" de Beethoven, esclarece o pianista, "é preciso haver voluntariedade, mas não rudeza...". No final da terceira sonata de Chopin, ele comenta para o aluno: "você toca com altivez, ostentando os estandartes e agitando as bandeiras, mas é preciso ser um pouco mais cavalheiresco...". Muitas vezes, entretanto, a pura exemplificação prática toma o primeiro plano: "Assim...", diz Cortot, "e não assim...".
Um universo se abre na mais leve mudança de sonoridade, um abismo irrompe à menor nuance. Pode parecer um pouco exagerado o que estou dizendo; corrijo com uma comparação mais corriqueira e técnica. Uma diferença absolutamente imperceptível de medida faz com que a chave entre ou não na fechadura.
Mas o interesse de "Alfred Cortot: The Master Classes" (Sony) não está apenas nessa arte de sutileza e de ajustes milagrosos. Temos a impressão de ouvir, não o que Cortot está tocando apenas mas o que ele próprio está ouvindo quando toca; e assim, em poucos minutos de aula, cada obra musical parece sair transfigurada das mãos -mas sobretudo da mente- do pianista.
Pablo Casals dizia que se deve tocar Mozart como se fosse Chopin, e Chopin como se fosse Mozart. Cortot, que formou com Casals e com o violinista Jacques Thibaud um legendário grupo camerístico, vai mais longe. Em alguns momentos, um minueto de Bach soa como Debussy, e uma balada de Chopin, como Prokofiev. Acordes pesados e lentos numa sonata de Mozart fazem efeito de puro Wagner (como regente, Cortot estreou o "Crepúsculo dos Deuses" em Paris, em 1902). E em Beethoven se descobrem, por vezes, as vacilações de Chopin ou os tumultos de Richard Strauss.
Não falo aqui das "notas erradas" -há uma quantidade astronômica delas, nestas demonstrações didáticas que não se pretendem números de concerto-, mas da interpretação propriamente dita, das forças secretas que Cortot revolve sob a superfície da partitura. Penso numa passagem da segunda parte do "Fausto", onde o herói de Goethe não deseja outra coisa se não encontrar-se com Helena de Tróia. Mefistófeles não considera esse pedido de fácil consecução. Não tem acesso aos povos da época pagã, que vivem num inferno próprio. Mas há um jeito. "Fala, fala sem tardança", impacienta-se Fausto, como sempre, aliás.
"Contra a vontade", responde Mefistófeles, "te desvelo um mistério mais alto. Deusas imperam em solidão augusta, em torno delas nenhum lugar existe, nenhum tempo as cerca; falar delas é esforço vão. Mães, é o que são!". Fausto se admira: "Mães!". "Tremes?", pergunta Mefisto. "As Mães! Mães! Como soam fantásticas essas palavras!" ("Die Mütter! Mütter! - 's klingt so wunderlich!") Fausto pergunta qual o caminho para chegar a elas. "Kein Weg!" Nenhum caminho, retruca o demônio. Pois, em lugares onde nunca se andou, não há como andar; e o caminho onde as preces não chegam, não há como pedir. "Estás preparado?"
Talvez a música tenha parte nesse mistério.
Bem que eu disse que o gosto pelas gravações históricas termina num certo misticismo. A sensação de que mundos inteiros vêm à tona por meio da música se intensifica com a sensação de que um grande artista do passado ressurgiu, vivo, dentro da casa da gente. Mas, sem deixar de ouvir o disco, podemos moderar um pouco essas fantasmagorias germânicas.
Cortot também insiste com freqüência na naturalidade, na facilidade com que determinada peça deve "chegar" até nós. Muitas vezes "já chegou", de fato, antes de percebermos. O tema do primeiro movimento da "Sonata K. 331" de Mozart, muito tranqüilo e simples, abre a porta sem pedir licença, sem frufrus e rococós; é tão familiar quanto o rosto de alguém que sempre amamos. No mundo dos espíritos, como da arte, imagino que só funcionam as invocações que não precisam ser feitas; e o lugar inacessível, a que Fausto queria chegar, estava com ele o tempo todo.


@ - coelhofsp@uol.com.br

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