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MARCELO COELHO
Fantasmas dentro de um piano de cauda
Há muitos grupos e subgrupos entre os fãs de música clássica, e a indústria fonográfica até que trata bem a comunidade -de todas, talvez a mais
impressionável e mística- dos
que admiram os grandes intérpretes do passado. Um violinista
legendário, prolongando uma nota entre as pipocas e os estalidos
da gravação antiquíssima; um
maestro titânico, regendo contra
um mar de chiados e tosses preservadas na baquelite; um quarteto de cordas ilustre nos anos 20,
como uma assembléia de espectros flutuando numa sessão espírita...
Tenho um pouco esse fetiche.
Mas foi lançada no mercado internacional uma caixa com três
CDs que pode interessar mais do
que simplesmente os adeptos da
pura arqueologia musical. É a
gravação, não dos concertos, mas
de várias aulas públicas -"master classes", como se diz- que o
pianista Alfred Cortot (1877-1962) ministrou a seus alunos, já
no fim da vida. Grandes obras do
repertório pianístico -três baladas de Chopin, a "Partita nš 1" de
Bach, cinco sonatas de Beethoven- são apresentadas e discutidas.
Não ouvimos nenhuma peça na
íntegra: os CDs não incluem a interpretação dos alunos de Cortot,
mas apenas as preleções do mestre depois de cada número, num
vaivém entre a exemplificação
prática ao piano e os comentários
de cunho teórico-literário que,
com voz suave e segura, ele dispensa ao microfone.
Claro que em música a "mensagem" de uma obra é coisa muito
arbitrária de determinar. Toda
sorte de comparações narrativas,
de imaginações românticas, pode
ser invocada a propósito de determinada passagem musical, e Cortot não as evita: alguns acordes finais numa peça de Chopin devem
ser, diz ele, como "as últimas pedras que alguém deixa cair sobre
um túmulo".
Mas não se trata apenas de "literatura". São inúmeras as precisões, as nuances de tom e de estilo,
que Cortot faz notar ao público,
graças a um poder de expressão
verbal que nem sempre os grandes músicos possuem. Em determinado "prestissimo" de Beethoven, esclarece o pianista, "é preciso haver voluntariedade, mas não
rudeza...". No final da terceira sonata de Chopin, ele comenta para
o aluno: "você toca com altivez,
ostentando os estandartes e agitando as bandeiras, mas é preciso
ser um pouco mais cavalheiresco...". Muitas vezes, entretanto, a
pura exemplificação prática toma o primeiro plano: "Assim...",
diz Cortot, "e não assim...".
Um universo se abre na mais leve mudança de sonoridade, um
abismo irrompe à menor nuance.
Pode parecer um pouco exagerado o que estou dizendo; corrijo
com uma comparação mais corriqueira e técnica. Uma diferença
absolutamente imperceptível de
medida faz com que a chave entre
ou não na fechadura.
Mas o interesse de "Alfred Cortot: The Master Classes" (Sony)
não está apenas nessa arte de sutileza e de ajustes milagrosos. Temos a impressão de ouvir, não o
que Cortot está tocando apenas
mas o que ele próprio está ouvindo quando toca; e assim, em poucos minutos de aula, cada obra
musical parece sair transfigurada
das mãos -mas sobretudo da
mente- do pianista.
Pablo Casals dizia que se deve
tocar Mozart como se fosse Chopin, e Chopin como se fosse Mozart. Cortot, que formou com Casals e com o violinista Jacques
Thibaud um legendário grupo camerístico, vai mais longe. Em alguns momentos, um minueto de
Bach soa como Debussy, e uma
balada de Chopin, como Prokofiev. Acordes pesados e lentos numa sonata de Mozart fazem efeito de puro Wagner (como regente,
Cortot estreou o "Crepúsculo dos
Deuses" em Paris, em 1902). E em
Beethoven se descobrem, por vezes, as vacilações de Chopin ou os
tumultos de Richard Strauss.
Não falo aqui das "notas erradas" -há uma quantidade astronômica delas, nestas demonstrações didáticas que não se pretendem números de concerto-,
mas da interpretação propriamente dita, das forças secretas
que Cortot revolve sob a superfície da partitura. Penso numa passagem da segunda parte do
"Fausto", onde o herói de Goethe
não deseja outra coisa se não encontrar-se com Helena de Tróia.
Mefistófeles não considera esse
pedido de fácil consecução. Não
tem acesso aos povos da época pagã, que vivem num inferno próprio. Mas há um jeito. "Fala, fala
sem tardança", impacienta-se
Fausto, como sempre, aliás.
"Contra a vontade", responde
Mefistófeles, "te desvelo um mistério mais alto. Deusas imperam
em solidão augusta, em torno delas nenhum lugar existe, nenhum
tempo as cerca; falar delas é esforço vão. Mães, é o que são!". Fausto se admira: "Mães!". "Tremes?",
pergunta Mefisto. "As Mães!
Mães! Como soam fantásticas essas palavras!" ("Die Mütter! Mütter! - 's klingt so wunderlich!")
Fausto pergunta qual o caminho
para chegar a elas. "Kein Weg!"
Nenhum caminho, retruca o demônio. Pois, em lugares onde
nunca se andou, não há como andar; e o caminho onde as preces
não chegam, não há como pedir.
"Estás preparado?"
Talvez a música tenha parte
nesse mistério.
Bem que eu disse que o gosto pelas gravações históricas termina
num certo misticismo. A sensação
de que mundos inteiros vêm à tona por meio da música se intensifica com a sensação de que um
grande artista do passado ressurgiu, vivo, dentro da casa da gente.
Mas, sem deixar de ouvir o disco,
podemos moderar um pouco essas fantasmagorias germânicas.
Cortot também insiste com freqüência na naturalidade, na facilidade com que determinada peça
deve "chegar" até nós. Muitas vezes "já chegou", de fato, antes de
percebermos. O tema do primeiro
movimento da "Sonata K. 331" de
Mozart, muito tranqüilo e simples, abre a porta sem pedir licença, sem frufrus e rococós; é tão familiar quanto o rosto de alguém
que sempre amamos. No mundo
dos espíritos, como da arte, imagino que só funcionam as invocações que não precisam ser feitas; e
o lugar inacessível, a que Fausto
queria chegar, estava com ele o
tempo todo.
@ - coelhofsp@uol.com.br
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