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CARLOS HEITOR CONY
Do diário de um editor
Dezesseis de outubro de
1978. Pouco mais de 13h no
Rio de Janeiro. Em Roma, seriam
quase 18h. Mais alguns minutos e
a chaminé da capela Sistina soltaria no ar uma fumaça, e a cor
dessa fumaça (por mais anacrônico que parecesse numa época
de comunicações eletrônicas) seria importante para o mundo.
Diante dos teletipos, na minha sala de editor, eu olhava as três máquinas que se moviam sozinhas,
comandadas pelas centrais das
agências que operavam conosco.
As bobinas de papel rolavam, a
fita roxa imprimindo os telegramas que não me interessavam. A
qualquer instante, todas as notícias se deteriam para informar a
cor da fumaça que sairia da capela Sistina.
Era o segundo dia do conclave
e, no segundo dia, era o oitavo escrutínio. Seria a oitava tentativa
dos 111 cardeais de obter um novo
chefe para a Igreja Católica.
De repente, o teletipo da France
Presse interrompeu o telegrama
que enviava, as teclas ameaçaram imprimir alguma coisa, a tira de papel rodou vários espaços
e, logo em seguida, as duas máquinas restantes também pararam, com a mesma indecisão, até
que, ao mesmo tempo, a fita roxa
dos três teletipos deixou gravada
no papel: "Cidade do Vaticano
-Foi eleito o novo papa. Repetimos: foi eleito o novo papa".
O aparelho de TV em cima de
minha mesa entrou com uma edição extraordinária, limitando-se
a repetir a mesma frase: o novo
papa fora eleito. Apesar dos 10 mil
quilômetros que me separavam
da praça São Pedro, eu compreendia a indecisão da notícia.
Nos sete escrutínios anteriores, a
fumaça que saíra da chaminé
não era preta nem branca, mas
cinzenta. Creio que não fui o único a ficar revoltado contra esse tipo de comunicação. Imaginava
111 homens que haviam chegado
ao cardinalato, alguns deles notáveis pelo saber profano ou religioso, muitos deles provenientes de
países altamente industrializados, e, de repente, ficávamos todos dependendo da eficiência de
uma velha chaminé.
Bem, temos o papa. Daqui a
pouco, a sacada principal da basílica de São Pedro se abrirá, o cardeal Pericle Felici, a menos que
tenha sido o eleito, pronunciará
as palavras da tradição. Como
bom latinista, exagerará nos acusativos, "gaudiummmm", "magnummmm", "papammmmm"
("Núncio vobis gaudium magnum").
Continuei diante dos teletipos,
que agora estavam parados. Passaram-se dez, 15 minutos. Eu me
lembrava de dois meses antes,
quando fiquei à espera da mesma
revelação. Paulo 6º morrera em
Castelgandolfo. Sua sucessão fora
também uma surpresa. Albino
Luciani, patriarca de Veneza,
não estava entre os cotados, mas
o retrato falado do novo papa levaria, primeiro, a um italiano, segundo, a um italiano não ligado à
Cúria Romana e, terceiro, a um
homem cuja santidade se imporia
aos cardeais divididos em conciliares, progressistas, curialistas e
até terceiro-mundistas.
Colocadas essas coordenadas
numa lista, sobrariam três ou
quatro nomes -e Albino Luciani
era o mais notável deles. No conclave daquele mesmo ano, anotara o nome dele entre os "papáveis" com chances depois dos três
primeiros escrutínios, quando as
forças de cada grupo seriam contadas, pesadas, divididas e, finalmente, somadas.
No quarto escrutínio daquele
dia, a fumaça saíra branca -estranhamente branca-, logo ficara preta, depois clareara novamente: nunca se deve descrer de
uma velha chaminé. Lembrava o
rosto redondo de Pericle Felici,
rindo à toa para anunciar o nome
de Albino Luciani. E foi um impacto: apareceu na sacada de São
Pedro uma espécie de tio que todos temos em algum lugar, um
homem que sorria porque, para
ele, a vida em si é uma dádiva.
O novo papa havia sido um
achado dos cardeais que sentiram
a barra pesada demais para entregar o governo da igreja a um
dos grupos e, na dúvida, optaram
pelo bom senso, pelo óbvio. Eu havia conhecido Albino Luciani
quatro anos antes, em Veneza.
Fazia frio, entrara na basílica de
São Marcos para fugir da chuva e,
lá dentro, encontrara um padre
que conversava com alguns fiéis,
concentrados nas primeiras filas.
Era conversa mesmo, e não um
sermão, pois logo aquele padre
perguntou de onde eu era e o que
fazia. Tinha o jeito de parente
mais velho, curioso de saber como
vai a família. Logo identifiquei
naquele padre o patriarca de Veneza e aproveitei a ocasião para
exercer a minha profissão. Entre
as perguntas que lhe fiz, a mais
impiedosa foi sobre Roma, o que
ele achava de Roma, ou seja, da
Cúria, da remota possibilidade de
um dia chegar a papa.
O cardeal Luciani respondeu
com o sorriso que mais tarde iluminaria o mundo: "Meu filho, eu
sou um padre que gosta de batizar crianças". Por mais que pareça anedótico, ali estava todo um
programa de pontificado, um
pontificado que começaria naquele sábado, 26 de agosto. Roma
tem seus segredos. Pode ser que
alguns dignitários romanos tenham desaprendido como se batiza uma criança, mas aprenderam, por gosto ou necessidade, todos os trancos de uma administração que, além das responsabilidades inerentes a qualquer administração humana, tem o encargo de conduzir o patrimônio
espiritual, a herança sobrenatural de milhões de seres humanos.
Esses trancos, que amarguraram até quase ao desânimo os últimos anos de Paulo 6º, seriam
pesados para aquele bom homem
de origem aldeã, que gostava de
citar Pinochio e Tom Sawyer, um
homem que não era exatamente
deste mundo, pertencendo talvez
ao universo mágico e encantado
dos mitos afetivos que cultuamos
desde a infância. O sorriso de
João Paulo 1º durou o espaço de
33 dias -muito para um recado,
pouquíssimo para um pontificado.
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