São Paulo, sexta-feira, 08 de abril de 2005

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CARLOS HEITOR CONY

Do diário de um editor

Dezesseis de outubro de 1978. Pouco mais de 13h no Rio de Janeiro. Em Roma, seriam quase 18h. Mais alguns minutos e a chaminé da capela Sistina soltaria no ar uma fumaça, e a cor dessa fumaça (por mais anacrônico que parecesse numa época de comunicações eletrônicas) seria importante para o mundo. Diante dos teletipos, na minha sala de editor, eu olhava as três máquinas que se moviam sozinhas, comandadas pelas centrais das agências que operavam conosco.
As bobinas de papel rolavam, a fita roxa imprimindo os telegramas que não me interessavam. A qualquer instante, todas as notícias se deteriam para informar a cor da fumaça que sairia da capela Sistina.
Era o segundo dia do conclave e, no segundo dia, era o oitavo escrutínio. Seria a oitava tentativa dos 111 cardeais de obter um novo chefe para a Igreja Católica.
De repente, o teletipo da France Presse interrompeu o telegrama que enviava, as teclas ameaçaram imprimir alguma coisa, a tira de papel rodou vários espaços e, logo em seguida, as duas máquinas restantes também pararam, com a mesma indecisão, até que, ao mesmo tempo, a fita roxa dos três teletipos deixou gravada no papel: "Cidade do Vaticano -Foi eleito o novo papa. Repetimos: foi eleito o novo papa".
O aparelho de TV em cima de minha mesa entrou com uma edição extraordinária, limitando-se a repetir a mesma frase: o novo papa fora eleito. Apesar dos 10 mil quilômetros que me separavam da praça São Pedro, eu compreendia a indecisão da notícia. Nos sete escrutínios anteriores, a fumaça que saíra da chaminé não era preta nem branca, mas cinzenta. Creio que não fui o único a ficar revoltado contra esse tipo de comunicação. Imaginava 111 homens que haviam chegado ao cardinalato, alguns deles notáveis pelo saber profano ou religioso, muitos deles provenientes de países altamente industrializados, e, de repente, ficávamos todos dependendo da eficiência de uma velha chaminé.
Bem, temos o papa. Daqui a pouco, a sacada principal da basílica de São Pedro se abrirá, o cardeal Pericle Felici, a menos que tenha sido o eleito, pronunciará as palavras da tradição. Como bom latinista, exagerará nos acusativos, "gaudiummmm", "magnummmm", "papammmmm" ("Núncio vobis gaudium magnum").
Continuei diante dos teletipos, que agora estavam parados. Passaram-se dez, 15 minutos. Eu me lembrava de dois meses antes, quando fiquei à espera da mesma revelação. Paulo 6º morrera em Castelgandolfo. Sua sucessão fora também uma surpresa. Albino Luciani, patriarca de Veneza, não estava entre os cotados, mas o retrato falado do novo papa levaria, primeiro, a um italiano, segundo, a um italiano não ligado à Cúria Romana e, terceiro, a um homem cuja santidade se imporia aos cardeais divididos em conciliares, progressistas, curialistas e até terceiro-mundistas.
Colocadas essas coordenadas numa lista, sobrariam três ou quatro nomes -e Albino Luciani era o mais notável deles. No conclave daquele mesmo ano, anotara o nome dele entre os "papáveis" com chances depois dos três primeiros escrutínios, quando as forças de cada grupo seriam contadas, pesadas, divididas e, finalmente, somadas.
No quarto escrutínio daquele dia, a fumaça saíra branca -estranhamente branca-, logo ficara preta, depois clareara novamente: nunca se deve descrer de uma velha chaminé. Lembrava o rosto redondo de Pericle Felici, rindo à toa para anunciar o nome de Albino Luciani. E foi um impacto: apareceu na sacada de São Pedro uma espécie de tio que todos temos em algum lugar, um homem que sorria porque, para ele, a vida em si é uma dádiva.
O novo papa havia sido um achado dos cardeais que sentiram a barra pesada demais para entregar o governo da igreja a um dos grupos e, na dúvida, optaram pelo bom senso, pelo óbvio. Eu havia conhecido Albino Luciani quatro anos antes, em Veneza. Fazia frio, entrara na basílica de São Marcos para fugir da chuva e, lá dentro, encontrara um padre que conversava com alguns fiéis, concentrados nas primeiras filas. Era conversa mesmo, e não um sermão, pois logo aquele padre perguntou de onde eu era e o que fazia. Tinha o jeito de parente mais velho, curioso de saber como vai a família. Logo identifiquei naquele padre o patriarca de Veneza e aproveitei a ocasião para exercer a minha profissão. Entre as perguntas que lhe fiz, a mais impiedosa foi sobre Roma, o que ele achava de Roma, ou seja, da Cúria, da remota possibilidade de um dia chegar a papa.
O cardeal Luciani respondeu com o sorriso que mais tarde iluminaria o mundo: "Meu filho, eu sou um padre que gosta de batizar crianças". Por mais que pareça anedótico, ali estava todo um programa de pontificado, um pontificado que começaria naquele sábado, 26 de agosto. Roma tem seus segredos. Pode ser que alguns dignitários romanos tenham desaprendido como se batiza uma criança, mas aprenderam, por gosto ou necessidade, todos os trancos de uma administração que, além das responsabilidades inerentes a qualquer administração humana, tem o encargo de conduzir o patrimônio espiritual, a herança sobrenatural de milhões de seres humanos.
Esses trancos, que amarguraram até quase ao desânimo os últimos anos de Paulo 6º, seriam pesados para aquele bom homem de origem aldeã, que gostava de citar Pinochio e Tom Sawyer, um homem que não era exatamente deste mundo, pertencendo talvez ao universo mágico e encantado dos mitos afetivos que cultuamos desde a infância. O sorriso de João Paulo 1º durou o espaço de 33 dias -muito para um recado, pouquíssimo para um pontificado.


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