São Paulo, quarta, 8 de abril de 1998

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JAZZ
Caixa traz sax que encantou o Vanguard

CARLOS CALADO
especial para a Folha

Ele morreu muito cedo, três décadas atrás. Porém, cada vez que uma de suas históricas gravações retorna ao mercado, agora em forma de CD, a mística do saxofonista John Coltrane (1926-1967) parece renascer mais forte ainda.
Essa é uma das sensações provocadas pela caixa "Coltrane: The Complete 1961 Village Vanguard Recordings" (edição importada da Impulse!), que reúne em quatro CDs todas as gravações feitas pelo músico, no mais antigo clube de jazz de Nova York, em 1961.
Raros músicos foram tão influentes como Coltrane. Desde que o sopro enérgico de seu sax tenor começou a chamar atenção no quinteto do trompetista Miles Davis, em 1955, várias gerações de instrumentistas e compositores vêm emulando e cultuando sua música até os dias de hoje.
Alguém já disse que ele parecia tocar para os deuses. Seus improvisos, longos e frenéticos, chegavam a durar 30 minutos, misturando violência, beleza, raiva, dor e religiosidade -nada a ver com o jazz anódino praticado hoje, em muitos cantos do planeta.
Nem mesmo a debilidade física, bastante evidente em seus últimos meses de vida, impediu Coltrane de continuar, obsessivamente, a praticar o instrumento até 12 horas por dia. Parecia estar cumprindo uma missão religiosa.
Quando morreu, naquele 17 de julho de 1967, os médicos apontaram como causa o câncer no fígado (também era diabético).
Mas há quem prefira afirmar que tamanha entrega física e emocional acabou matando-o aos poucos, nos palcos dos clubes e festivais de jazz.

Do "hard bop" ao "free jazz"

Coltrane proporcionou o mais consistente exemplo de evolução na linguagem jazzística.
Do "hard bop" de meados dos anos 50, seguido pela fase modal na companhia de Miles, ele expandiu as fronteiras harmônico-melódicas do gênero musical até mergulhar radicalmente no caos musical do "free jazz", já por volta de 1965.
Quem conhece o fantástico álbum "Coltrane Live at the Village Vanguard" (lançado no Brasil em 1977, pela Continental) sabe que essas gravações ilustram muito bem a fase de transição do saxofonista norte-americano.
Ao lado de McCoy Tiner (piano) e Elvin Jones (bateria), que vieram a formar o clássico John Coltrane Quartet, no palco do Village Vanguard também estavam o contrabaixo de Reggie Workman e o clarone (clarinete baixo) do irreverente Eric Dolphy (1928-1964).
Das três únicas faixas que compunham o álbum, a mais impactante era "Chasin' the Trane".
Num furioso "tour de force", Coltrane improvisava durante 16 minutos, com uma energia de tirar o fôlego de qualquer ouvinte. Era o caos "free" entrando pela porta da frente do jazz, com muitas notas esganiçadas e cacofonias.
Outro ponto alto do álbum original era a sublime "Spiritual", composição de Coltrane (ao sax soprano, nessa faixa) com uma atmosfera bem mística, realçada pelo clarone de Dolphy.

As quatro noites

Se o álbum lançado em 1962 não ultrapassava os 40 minutos regulamentares do LP, agora a caixa da Impulse! oferece quatro horas e meia de música.
Reúne todas as gravações de Coltrane durante a temporada de quatro noites no Vanguard, em novembro de 1961.
Assim, em vez de uma, pode-se ouvir três diferentes versões de "Chasin' the Trane", quatro de "Spiritual" e três de "Impressions".
Pode parecer "overdose", mas, nesse caso, trata-se de improvisadores do quilate de Coltrane, Dolphy, Elvin Jones ou McCoy Tyner. O risco de redundância, portanto, é zero.
Mesmo os coltranemaníacos que possuem os LPs "Impressions" (1963), "The Other Village Vanguard Tapes" (1977) e "Trane's Modes" (1979), que compilaram antes porções do material do Vanguard, certamente vão ficar curiosos ao saber que a caixa inclui também gravações inéditas.
Trata-se de versões alternativas de três composições de Coltrane: "India", "Miles' Mode" e "Naima". Compará-las com as gravações já conhecidas equivale a uma aula de criatividade musical.
A cuidadosa edição da caixa inclui ainda um livreto com textos históricos e analíticos, várias fotos inéditas e ilustrações, além das fichas técnicas completas das gravações -prática que as gravadoras nacionais ainda resistem a adotar, com frequência.
Quem ainda não tem intimidade com a música de Coltrane pode encontrar uma boa introdução nessa caixa. A atmosfera do Village Vanguard incentivou o mestre do jazz e seu quinteto a performances especialmente iluminadas.


Disco: Coltrane: The Complete 1961 Village Vanguard Recordings (com quatro CDs)
Artista: John Coltrane
Lançamento: Impulse!/MCA (importado)
Quanto: R$ 96 (em média)



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