São Paulo, quarta-feira, 08 de maio de 2002

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CRÍTICA

Longas dialogam com traumas coletivos

SYLVIA COLOMBO
EDITORA-ADJUNTA DA ILUSTRADA

"La Ciénaga" e "Fuck-land" possuem três aspectos em comum. O primeiro é o fato de terem consequências de tragédias políticas argentinas como pano de fundo -o declínio econômico e moral da classe média no filme de Lucrecia Martel e a perda das Falklands para os britânicos no de José Luis Marqués.
O segundo é a busca de um "realismo" com o mínimo de intervenções e recursos de edição -levado ao extremo no caso de "Fuckland", que assina o manifesto Dogma. Por fim, o fato de chamar a atenção para realidades longe de Buenos Aires, coisa rara quando se fala em crise argentina, na imprensa ou no cinema, onde as ruas do centro da capital parecem ser o único palco de observação das transformações políticas.
"La Ciénaga" é um drama ficcional que tenciona contar a história da derrocada da burguesia argentina sem necessariamente "contar" coisa nenhuma. A cineasta logra seu objetivo justamente por não narrar nada, passeando com a câmera diante de situações familiares cotidianas.
O filme inicia quando Mecha (Gabriela Borges), uma mulher de 50 anos, bêbada, tropeça na beirada de uma piscina de água turva, rodeada de outros adultos igualmente alcoolizados, e cai sobre os cacos de copos quebrados. Em torno dela e dos ferimentos em seu peito, metáfora do seio da mãe-pátria dilacerado, desfilam personagens e situações.
Expõem-se duas famílias de férias no norte da Argentina, crianças com roupas e cabelos em desalinho, cães sem rumo, homens idem, mulheres angustiadas que idealizam viagem à Bolívia que nunca acontece. Próximo dali, um pântano onde vacas afundam.
O filme insinua a abordagem de temas como o incesto, o lesbianismo, a exploração sexual de pobres por ricos, mas são problemáticas que não são desenvolvidas. São questões deixadas intencionalmente em aberto, coerentes com a inação dos personagens, que passam boa parte do tempo largados aos acontecimentos. Como a Argentina, não se sabe se estão indecisos ou se apenas desistiram.
Já "Fuckland" é um semidocumentário cômico, gravado clandestinamente, sobre um argentino que viaja às ilhas Falklands para "recolonizá-las" por meio de seu sêmen, que pretende espalhar em mulheres locais, dando início a um movimento de "recolonização". A idéia é uma construção absurda erigida pelo cineasta para questionar o que a seus olhos constituem dois reais absurdos históricos: o discurso que justificou a guerra das Malvinas (de ambos os lados) e a infantilidade dos argumentos usados pelos argentinos para retomar as ilhas.
Com uma câmera escondida, o protagonista recolhe depoimentos ao narrar sua busca e conquista de uma fêmea nativa. Ironiza os hábitos locais, é antiético, machista e sente-se superior por estar fazendo os locais de bobo ao filmá-los às escondidas.
Parece querer pregar uma vingança bem-humorada ao colonialismo inglês. O que concretiza, entretanto, é uma sátira à maneira como a sociedade argentina trata a memória do drama da guerra, de forma acrítica e apoiada num frágil discurso nacionalista.



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