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CINEMA
"Fuckland" e "La Ciénaga", que integram mostra em São Paulo, apresentam visões críticas da realidade do país
Filmes traçam descaminhos argentinos
SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL
Um vê a Argentina de fora para
dentro ("Fuckland"), e o outro, de
dentro para fora ("La Ciénaga").
São Paulo pode cotejar as duas visões a partir de hoje, no Cinusp
Paulo Emílio, que sedia mostra de
sete títulos dedicada à recente
produção cinematográfica argentina.
Filmado em 99 nas ilhas Malvinas, "Fuckland" é o primeiro projeto de cinema do diretor de comerciais José Luis Marqués. O cineasta e sua reduzida equipe desembarcaram como turistas no
território que a Argentina tentou,
sem sucesso, reaver do Reino
Unido em 82, numa ação que desencadeou a guerra das Malvinas.
O prazo permitido para permanência de visitantes nas Malvinas
é de exatos sete dias. Nesse período, sem autorização para produzir um longa-metragem nas ilhas,
Marqués diz que viveu "todo o inverso de o que é fazer um filme".
"Os atores [o argentino Fabián
Stratas e a inglesa Camilla Heaney] e eu fingíamos que não nos
conhecíamos. Às 4h da manhã,
eles iam, pé ante pé, até o meu
quarto e traçávamos os planos de
filmagens [feitas com câmeras digitais]. Às 8h, cada um tomava
seu destino. O curioso é que eles
precisavam se comportar como
diretores, porque eu nem sempre
estava por perto; e eu, como ator,
fingindo que não estava fazendo o
que de fato estava", conta.
As Malvinas serviam ao interesse de Marqués pelo formato do filme ("a mistura da linguagem ficcional com a do documentário") e
por seu conteúdo. "Sempre quis
fazer uma autocrítica do nosso
comportamento. Viajo muito e,
sobretudo quando vejo argentinos em outros países, ou seja, fora
de contexto, fico profundamente
incomodado com a forma como
agimos. No limite, esse filme poderia ter sido feito no Rio", diz.
Para ser fiel ao tom crítico e
"desde o início irônico", o delirante protagonista de "Fuckland", que planeja argentinizar
as Malvinas agindo como um reprodutor, é "o mais tonto possível", como acentua Marqués. Fato
que valeu ao diretor "mais de uma
dor de cabeça". Em seu país, não
nas Falklands. "Não temos o hábito de nos criticar."
Marqués diz que, como a intenção não era ironizar os kelpers (os
nativos das Malvinas), e sim os
próprios argentinos, nunca lhe
pareceu eticamente reprovável filmar pessoas sem que elas soubessem que seus depoimentos seriam usados num filme. "É como
os documentários são feitos. A
participação dos outros não estava roteirizada. Eu não podia supor o que eles diriam. Só seria desonesto se Fabián realmente se
envolvesse com uma kelper. Mas
preservamos esse limite", afirma.
Atualmente, Marqués se dedica
ao roteiro de um projeto ficcional
em torno do músico Astor Piazzolla. "Será algo mais tradicional.
A aventura de "Fuckland" foi suficiente", diz.
Inocência
Lucrecia Martel, que alcançou
prestígio internacional com "La
Ciénaga", seu filme de estréia,
premiado em Sundance e em Berlim, prepara agora um roteiro sobre "adolescentes místicas". Um
filme "sobre o mal que acarretam
as boas intenções católicas".
Usualmente visto como alegoria
da derrocada do país, "La Ciénaga" será analisado amanhã, no Cinusp, pela crítica argentina Ana
Maria Amado. Sobre esse aspecto,
Martel diz: "Meu filme não vaticinava uma queda, porque já estávamos caindo há anos, quando
comecei a escrevê-lo. Mas acho
que a crise gerou uma consciência
maior de classe e da história".
"La Ciénaga" será distribuído
em circuito comercial no Brasil,
pela Riofilme, no segundo semestre deste ano. Ainda assim, a chegada às telas brasileiras de um representante da safra do país vizinho terá caráter de exceção.
"Creio que as impossibilidades
de distribuição de cinema latino-americano na América Latina respondem, como todo o resto, à falta de visão de nossos governos sobre a difusão cultural, mas também a uma destruição intencional
que empresas norte-americanas
fizeram dos circuitos de distribuição e exibição de filmes."
"Uma amiga me contou que,
quando foi recebida na cadeira de
cinema da Universidade Columbia, em Nova York, autoridades
universitárias lhe deram as boas-vindas dizendo que o cinema era
a segunda atividade econômica
dos Estados Unidos. A número
um é a venda de armas. A venda
de armas e a venda de filmes não
pertencem a economias distintas.
Ambas são feitas com a mesma
violência e os mesmos critérios
culturais. Não há nenhuma inocência", diz.
A mostra de cinema argentino,
que inclui ainda "La Libertad", de
Lisandro Alonso, "Animalada",
de Sergio Bizzio, "Solo por Hoy",
de Ariel Rotter, "El Descanso", de
Rodrigo Moreno, Andrés Tambornino e Ulises Rosell, e "Un Día
de Suerte", de Sandra Gugliotta,
está em cartaz também no festival
de cinema independente Indie
2002, em Belo Horizonte.
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