São Paulo, quarta-feira, 08 de maio de 2002

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CINEMA

"Fuckland" e "La Ciénaga", que integram mostra em São Paulo, apresentam visões críticas da realidade do país

Filmes traçam descaminhos argentinos

SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

Um vê a Argentina de fora para dentro ("Fuckland"), e o outro, de dentro para fora ("La Ciénaga"). São Paulo pode cotejar as duas visões a partir de hoje, no Cinusp Paulo Emílio, que sedia mostra de sete títulos dedicada à recente produção cinematográfica argentina.
Filmado em 99 nas ilhas Malvinas, "Fuckland" é o primeiro projeto de cinema do diretor de comerciais José Luis Marqués. O cineasta e sua reduzida equipe desembarcaram como turistas no território que a Argentina tentou, sem sucesso, reaver do Reino Unido em 82, numa ação que desencadeou a guerra das Malvinas.
O prazo permitido para permanência de visitantes nas Malvinas é de exatos sete dias. Nesse período, sem autorização para produzir um longa-metragem nas ilhas, Marqués diz que viveu "todo o inverso de o que é fazer um filme".
"Os atores [o argentino Fabián Stratas e a inglesa Camilla Heaney] e eu fingíamos que não nos conhecíamos. Às 4h da manhã, eles iam, pé ante pé, até o meu quarto e traçávamos os planos de filmagens [feitas com câmeras digitais]. Às 8h, cada um tomava seu destino. O curioso é que eles precisavam se comportar como diretores, porque eu nem sempre estava por perto; e eu, como ator, fingindo que não estava fazendo o que de fato estava", conta.
As Malvinas serviam ao interesse de Marqués pelo formato do filme ("a mistura da linguagem ficcional com a do documentário") e por seu conteúdo. "Sempre quis fazer uma autocrítica do nosso comportamento. Viajo muito e, sobretudo quando vejo argentinos em outros países, ou seja, fora de contexto, fico profundamente incomodado com a forma como agimos. No limite, esse filme poderia ter sido feito no Rio", diz.
Para ser fiel ao tom crítico e "desde o início irônico", o delirante protagonista de "Fuckland", que planeja argentinizar as Malvinas agindo como um reprodutor, é "o mais tonto possível", como acentua Marqués. Fato que valeu ao diretor "mais de uma dor de cabeça". Em seu país, não nas Falklands. "Não temos o hábito de nos criticar."
Marqués diz que, como a intenção não era ironizar os kelpers (os nativos das Malvinas), e sim os próprios argentinos, nunca lhe pareceu eticamente reprovável filmar pessoas sem que elas soubessem que seus depoimentos seriam usados num filme. "É como os documentários são feitos. A participação dos outros não estava roteirizada. Eu não podia supor o que eles diriam. Só seria desonesto se Fabián realmente se envolvesse com uma kelper. Mas preservamos esse limite", afirma.
Atualmente, Marqués se dedica ao roteiro de um projeto ficcional em torno do músico Astor Piazzolla. "Será algo mais tradicional. A aventura de "Fuckland" foi suficiente", diz.

Inocência
Lucrecia Martel, que alcançou prestígio internacional com "La Ciénaga", seu filme de estréia, premiado em Sundance e em Berlim, prepara agora um roteiro sobre "adolescentes místicas". Um filme "sobre o mal que acarretam as boas intenções católicas".
Usualmente visto como alegoria da derrocada do país, "La Ciénaga" será analisado amanhã, no Cinusp, pela crítica argentina Ana Maria Amado. Sobre esse aspecto, Martel diz: "Meu filme não vaticinava uma queda, porque já estávamos caindo há anos, quando comecei a escrevê-lo. Mas acho que a crise gerou uma consciência maior de classe e da história".
"La Ciénaga" será distribuído em circuito comercial no Brasil, pela Riofilme, no segundo semestre deste ano. Ainda assim, a chegada às telas brasileiras de um representante da safra do país vizinho terá caráter de exceção.
"Creio que as impossibilidades de distribuição de cinema latino-americano na América Latina respondem, como todo o resto, à falta de visão de nossos governos sobre a difusão cultural, mas também a uma destruição intencional que empresas norte-americanas fizeram dos circuitos de distribuição e exibição de filmes."
"Uma amiga me contou que, quando foi recebida na cadeira de cinema da Universidade Columbia, em Nova York, autoridades universitárias lhe deram as boas-vindas dizendo que o cinema era a segunda atividade econômica dos Estados Unidos. A número um é a venda de armas. A venda de armas e a venda de filmes não pertencem a economias distintas. Ambas são feitas com a mesma violência e os mesmos critérios culturais. Não há nenhuma inocência", diz.
A mostra de cinema argentino, que inclui ainda "La Libertad", de Lisandro Alonso, "Animalada", de Sergio Bizzio, "Solo por Hoy", de Ariel Rotter, "El Descanso", de Rodrigo Moreno, Andrés Tambornino e Ulises Rosell, e "Un Día de Suerte", de Sandra Gugliotta, está em cartaz também no festival de cinema independente Indie 2002, em Belo Horizonte.



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