São Paulo, sábado, 08 de maio de 2010

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Crítica/"A Assombrosa Viagem de Pompônio Flato"

Aliado de Cervantes, Mendoza usa piada contra mal do mundo

Raro satirista em seu país, autor catalão mistura expressão erudita com gíria malandra na fala do protagonista da obra

JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nem Conan Doyle conceberia melhor auxiliar de detetive: que o Dr. Watson perdoe Eduardo Mendoza, mas o escritor catalão criou o maior (apesar de menor de idade) colaborador para investigações de 2.000 anos para cá: o menino Jesus.
Só que, ao contrário do que ocorre nas aventuras de Sherlock Holmes, em "A Assombrosa Viagem de Pompônio Flato" o narrador não é o assistente, e, sim, o protagonista.
Ou seria agonista? Perturbado por terrível enfermidade contraída em seu périplo pela Antiguidade em busca da nascente de água que supostamente traria sabedoria a quem a bebesse, o cidadão romano do século 1º de nossa era já era: provou de todos os arroios, apenas para adquirir uma flatulência crônica que o arremessa a 20 passos do cavalo a cada explosiva ocorrência.
De pum em pum, Pompônio Flato termina por chegar a Nazaré, onde é contratado pelo impúbere Jesus, cujo "pai", o marceneiro José, está condenado pelo assassinato de um ricaço do vilarejo. Assim, de cliente improvável, Jesus passa a assistente, tudo para provar a inocência de seu genitor. Então o pernóstico e esfarrapado Pompônio, tornado detetive "avant la lettre" (e bote "avant la lettre" nisso), sai a campo para investigações.
Mendoza, raro satirista na literatura contemporânea espanhola (caracterizada por baixa ousadia narrativa e por algum complexo de inferioridade diante da ficção hispano-americana), faz jus ao legado de Cervantes. Apoiando-se na anedota principal, a trama espelha tristezas atuais do mundo: há de tudo em Nazaré, de especulação imobiliária a prostituição, de maledicência (fofocam que José é corno manso) a terrorismo religioso e político.
E a tudo isso o filósofo Pompônio observa com perplexidade. Caracterizado pelo racionalismo extremo, o sabujo romano critica a variegada sociedade da Galileia: "Por estranho e avaro que pareça, os judeus acreditam em um só deus, a quem chamam de Javé".
Entre outras idiossincrasias, Pompônio Flato deplora a "mania legislativa" desse deus, cujo excesso de leis torna "impossível não incorrer em falta continuamente". Para ele, os judeus são estranhos, pois "não se inclinam a comer a bunda uns dos outros, nem mesmo entre amigos".
Entre o policial e a hagiografia escatológica (impossível não pensar em Luis Buñuel), Mendoza supera a piada de fundo histórico por meio da fala narradora de Pompônio Flato e sua mistura de expressão erudita com gíria malandra. Como o autor afirmou em entrevista: "Esquartejam gente em romances, mas neles ninguém diz que soltou um peido".

JOCA REINERS TERRON é autor de "Sonho Interrompido por Guilhotina" (Casa da Palavra)


A ASSOMBROSA VIAGEM DE POMPÔNIO FLATO

Autor: Eduardo Mendoza
Tradução: Luis Reyes Gil
Editora: Planeta
Quanto: R$ 46 (208 págs.)
Avaliação: ótimo




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