|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Crítica/"A Assombrosa Viagem de Pompônio Flato"
Aliado de Cervantes, Mendoza usa piada contra mal do mundo
Raro satirista em seu país, autor catalão mistura expressão
erudita com gíria malandra na fala do protagonista da obra
JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA
Nem Conan Doyle conceberia melhor auxiliar de detetive: que o
Dr. Watson perdoe Eduardo
Mendoza, mas o escritor catalão criou o maior (apesar de
menor de idade) colaborador
para investigações de 2.000
anos para cá: o menino Jesus.
Só que, ao contrário do que
ocorre nas aventuras de Sherlock Holmes, em "A Assombrosa Viagem de Pompônio Flato"
o narrador não é o assistente, e,
sim, o protagonista.
Ou seria agonista? Perturbado por terrível enfermidade
contraída em seu périplo pela
Antiguidade em busca da nascente de água que supostamente traria sabedoria a quem a bebesse, o cidadão romano do século 1º de nossa era já era: provou de todos os arroios, apenas
para adquirir uma flatulência
crônica que o arremessa a 20
passos do cavalo a cada explosiva ocorrência.
De pum em pum, Pompônio
Flato termina por chegar a Nazaré, onde é contratado pelo
impúbere Jesus, cujo "pai", o
marceneiro José, está condenado pelo assassinato de um ricaço do vilarejo. Assim, de
cliente improvável, Jesus passa
a assistente, tudo para provar a
inocência de seu genitor. Então
o pernóstico e esfarrapado
Pompônio, tornado detetive
"avant la lettre" (e bote "avant
la lettre" nisso), sai a campo para investigações.
Mendoza, raro satirista na literatura contemporânea espanhola (caracterizada por baixa
ousadia narrativa e por algum
complexo de inferioridade
diante da ficção hispano-americana), faz jus ao legado de
Cervantes. Apoiando-se na
anedota principal, a trama espelha tristezas atuais do mundo: há de tudo em Nazaré, de
especulação imobiliária a prostituição, de maledicência (fofocam que José é corno manso) a
terrorismo religioso e político.
E a tudo isso o filósofo Pompônio observa com perplexidade. Caracterizado pelo racionalismo extremo, o sabujo romano critica a variegada sociedade
da Galileia: "Por estranho e
avaro que pareça, os judeus
acreditam em um só deus, a
quem chamam de Javé".
Entre outras idiossincrasias,
Pompônio Flato deplora a "mania legislativa" desse deus, cujo
excesso de leis torna "impossível não incorrer em falta continuamente". Para ele, os judeus
são estranhos, pois "não se inclinam a comer a bunda uns
dos outros, nem mesmo entre
amigos".
Entre o policial e a hagiografia escatológica (impossível não
pensar em Luis Buñuel), Mendoza supera a piada de fundo
histórico por meio da fala narradora de Pompônio Flato e
sua mistura de expressão erudita com gíria malandra.
Como o autor afirmou em
entrevista: "Esquartejam gente
em romances, mas neles ninguém diz que soltou um peido".
JOCA REINERS TERRON é autor de "Sonho Interrompido por Guilhotina" (Casa da Palavra)
A ASSOMBROSA VIAGEM DE
POMPÔNIO FLATO
Autor: Eduardo Mendoza
Tradução: Luis Reyes Gil
Editora: Planeta
Quanto: R$ 46 (208 págs.)
Avaliação: ótimo
Texto Anterior: Senhor sátira Próximo Texto: Trecho Índice
|