São Paulo, sexta, 8 de maio de 1998

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O feliz fim de Lima Barreto


Obra-prima do autor pré-modernista recebe edição crítica da Unesco, é adaptada para o cinema e ganha versão de bolso pela editora LP&M


HAROLDO CERAVOLO SEREZA
da Redação


Lima Barreto sempre foi uma espécie de "coitadinho" da literatura brasileira. De bêbado tinha muito, de louco, o pai e mais um pouco. Sua conturbada vida, recheada por passagens por hospícios e delírios causados pelo alcoolismo, ajudava a reforçar o preconceito de que ele não passava de um bom cronista da vida carioca que colocava no papel suas frustrações pessoais.
O talento e seu papel como referência para entender, por exemplo, o regionalismo de Graciliano Ramos eram reconhecidos ciclicamente, em geral em épocas de baixa dos defensores do formalismo.
Parece que isso acabou. Sua obra-prima, "Triste Fim de Policarpo Quaresma", recebe uma edição crítica da Unesco e sua versão cinematográfica, "Policarpo Quaresma - Herói do Brasil", tem estréia nacional este mês. O livro também é reeditado em versão de bolso, pela LP&M.
A série Archivos da Unesco é uma iniciativa multinacional, envolvendo França, Itália, Espanha, Portugal, Brasil, Argentina, México e Colômbia. Seus objetivos são preservar os manuscritos e publicar edições críticas de livros de autores de língua portuguesa e espanhola (e também dos de língua inglesa e francesa do Caribe).
Lima Barreto é o primeiro brasileiro pré-modernista a ser incluído na série (já foram publicados "Macunaíma", de Mário de Andrade, "A Paixão Segundo G.H.", de Clarice Lispector, e "Crônica da Casa Assassinada", de Lúcio Cardoso). Contos de Machado de Assis serão publicados em 1999, em edição coordenada pelo inglês John Gledson.
A série Archivos é voltada para o público acadêmico, mas nem por isso deixa de ser excelente leitura para os que não frequentam a academia (embora tenha alguns textos apenas em inglês e italiano). Tem especial valor ao dar um bom painel de como a obra do autor foi consolidando seu prestígio.
Além de cotejar as versões de "Triste Fim", há uma cronologia elaborada pelo biógrafo de Barreto, Francisco de Assis Barbosa, dois textos dedicados à história do livro e leituras realizadas por nomes como o historiador Nicolau Sevcenko, além de artigos selecionados desde o período em que o escritor se lançou à literatura.
Como bem observou Carlos Nelson Coutinho, em ensaio citado pela organizadora Carmem Lúcia Negreiros, mas que infelizmente não faz parte da coleção, é preciso entender que, para Lima Barreto seguir o realismo de Machado de Assis, era preciso romper com ele e, principalmente, com seus discípulos, tanto do ponto de vista formal quando do de conteúdo.
O mundo da obra de Lima Barreto é o conturbado período da Velha República, não mais o da aparente tranquilidade do fim do Império de "Dom Casmurro" ou "Quincas Borba".
A falsa segurança da reclusão no mundo da vida privada, dissecada por Machado, já não serve a Lima e a seu tempo, porque nem essa falsa segurança existe mais. Mais que um militante escritor, Lima foi um escritor militante, que olhava a sociedade ainda com mais respeito e interesse do que devotava à sociologia.
Num país que começava a conviver com o movimento operário (Lima saudou a Revolução Russa), tocou nos principais temas que preocupam ainda hoje a sociedade brasileira, e a maioria desses problemas ainda não foi superado -o que torna sua obra fundamental para pensar o Brasil.
O que aparenta "desleixo", como mostra Antonio Houaiss, outro coordenador da edição, não passa de intenção: Lima acreditava no português vivo, não no recomendado pelos parnasianos. Seus livros são libelos em defesa da clareza e de uma língua moderna.
Policarpo Quaresma, o herói de "Triste Fim", serve para mostrar a burocracia crescente e os desmandos da Primeira República. Mas sua paixão incontida pelo Brasil mostra também o risco do nacionalismo, quando desligado da realidade (Policarpo é, ele também, um burocrata).
Assumidamente mulato, Lima Barreto põe negros nos papéis principais, como acontece nos livros "Recordações do Escrivão Isaías Caminha" e "Clara dos Anjos". No primeiro, o protagonista tem sua ascensão social constantemente barrada pela cor da pele, o que, inicialmente, tem dificuldades de perceber. No segundo, a protagonista, uma jovem filha de um carteiro é seduzida por um cantador de modinhas branco.
O protagonista de "Numa e a Ninfa" é um deputado que só se preocupa em manter seu cargo.
Lima Barreto não nutria simpatia pelo movimento sufragista da época (para que as mulheres queriam votar, se o voto era de cabresto?). Mas não via a mulher com olhar superior. A mulher de Numa Pompílio de Castro é quem estuda e escreve os discursos que dão respeitabilidade ao seu marido. Aí, pode-se ver que Lima aponta uma saída: os que não compartilham do poder é que podem, efetivamente, promover mudanças.
A integridade narrativa de "Triste Fim de Policarpo Quaresma", em que o foco não se dissipa nem atrapalha a compreensão do mundo à volta do personagem principal, é o ápice estético de literatura que continua viva, enquanto a de seus contemporâneos opositores caem pouco a pouco no esquecimento.


Livro: Triste Fim de Policarpo Quaresma - Edição Crítica Coordenadores: Antonio Houaiss e Carmem Lúcia Negreiros
Lançamento: Unesco/Scipione
Preço: R$ 38 (680 págs.)
Livro: Triste Fim de Policarpo Quaresma
Lançamento: LP&M
Preço: R$ 6,50 (304 págs.)



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