São Paulo, sexta, 8 de maio de 1998

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POR QUE ESCREVO
Dois mundos que se encontram na ficção

MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas

Escrevo porque desde cedo precisei encontrar uma companhia mais segura do que a companhia humana, um lugar mais seguro do que as cidades humanas.
Talvez minha solidão já fosse maior do que eu poderia suportar sem uma "terceira perna", como se diz.
Eu tinha 12 anos quando uma mudança brusca de cidade e de cultura alterou para sempre minha vida e minha linguagem.
Menina sensibilizada (na verdade traumatizada) pela perda da minha vida de infância em Recife, vim para São Paulo e tive que reaprender tudo: a me vestir, a falar, a comer.
Esse reaprendizado, especialmente o da língua, foi um exercício de redação e ficção.
Como éramos discriminados na escola por causa de nosso sotaque nordestino, meus irmãos e eu ficávamos horas treinando o "falar paulista", idioma estranho, cheio de erros de gramática, cheio de palavras e sonoridades diferentes.
Nessa época, comecei a fazer ficção, a escrever poesias e pequenas histórias cujo tema único era minha cidade e minha vida perdidas.
Procurava recuperar com palavras uma realidade que eu não queria perder e que parecia roubada a todo momento pela violência de outra realidade: a de São Paulo e a de minha adolescência confusa e pobre.
Dessa guerra de sabores e de palavras -a carne pisada e repisada do hambúrguer paulistano, o catchup, meu paladar recifense, em 1970, desconhecia e recusava; minhas palavras não eram figo e caqui; eram pitomba, manga-espada, tapioca e nego-bom-, dessa guerra surgi eu escrevendo ficção, coisa anormal, que escondi de todos por muito tempo, me sentindo manca.
Também nessa época comecei a aprender línguas estrangeiras, outro exercício de comparação, de redação, de formação de uma linguagem que me servia, sem eu ter consciência disso, para ir juntando dois mundos -duas pessoas- que tinham se separado para nunca mais se encontrarem de novo, a não ser na realidade ilusória da ficção.



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