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POR QUE ESCREVO
Dois mundos que se encontram na ficção
MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas
Escrevo porque desde cedo
precisei encontrar uma companhia mais segura do que a companhia humana, um lugar mais
seguro do que as cidades humanas.
Talvez minha solidão já fosse
maior do que eu poderia suportar sem uma "terceira perna",
como se diz.
Eu tinha 12 anos quando uma
mudança brusca de cidade e de
cultura alterou para sempre minha vida e minha linguagem.
Menina sensibilizada (na verdade traumatizada) pela perda
da minha vida de infância em
Recife, vim para São Paulo e tive
que reaprender tudo: a me vestir, a falar, a comer.
Esse reaprendizado, especialmente o da língua, foi um exercício de redação e ficção.
Como éramos discriminados
na escola por causa de nosso sotaque nordestino, meus irmãos e
eu ficávamos horas treinando o
"falar paulista", idioma estranho, cheio de erros de gramática, cheio de palavras e sonoridades diferentes.
Nessa época, comecei a fazer
ficção, a escrever poesias e pequenas histórias cujo tema único
era minha cidade e minha vida
perdidas.
Procurava recuperar com palavras uma realidade que eu não
queria perder e que parecia roubada a todo momento pela violência de outra realidade: a de
São Paulo e a de minha adolescência confusa e pobre.
Dessa guerra de sabores e de
palavras -a carne pisada e repisada do hambúrguer paulistano,
o catchup, meu paladar recifense, em 1970, desconhecia e recusava; minhas palavras não eram
figo e caqui; eram pitomba,
manga-espada, tapioca e nego-bom-, dessa guerra surgi eu
escrevendo ficção, coisa anormal, que escondi de todos por
muito tempo, me sentindo manca.
Também nessa época comecei
a aprender línguas estrangeiras,
outro exercício de comparação,
de redação, de formação de uma
linguagem que me servia, sem eu
ter consciência disso, para ir
juntando dois mundos -duas
pessoas- que tinham se separado para nunca mais se encontrarem de novo, a não ser na realidade ilusória da ficção.
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