São Paulo, sábado, 08 de junho de 2002

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"O AMOR DESSA MULHER" E "DEIXE O QUARTO COMO ESTÁ"

Contos gaúchos espelham imobilismo de personagens

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Dois autores dão mais um passo com o propósito de firmar-se na seara dos bons da literatura brasileira. Coincidentemente ambos são gaúchos, têm a mesma idade (nascidos em 64) e agora exibem seus experimentos na arte do conto. São Roberto Schultz ("O Amor dessa Mulher") e Amilcar Bettega Barbosa ("Deixe o Quarto como Está").
Há outro ponto em comum. Suas histórias parecem tratar de personagens e situações estáticas, presas a um estranho imobilismo. O conflito, quando existe, se esconde por baixo dessa capa de estagnação. Schultz definiu bem o quadro ao fazer um personagem recitar versos de Mário Quintana: "Que esta minha paz e este meu amado silêncio/ Não iludam a ninguém/ Não é a paz de uma cidade bombardeada e deserta/ Nem tampouco a paz compulsória dos cemitérios/ Acho-me relativamente feliz/ Porque nada de exterior me acontece.../ Mas,/ Em mim, na minha alma, / Pressinto que vou ter um terremoto!".
As coincidências terminam aí, pois, enquanto Schultz observa seus personagens do alto, Bettega prefere se posicionar ao lado deles. Explico. O olhar em geral desapiedado de Schultz apequena suas criaturas, achata-as. Sua pena procura o ridículo e convida ao riso. Seja a velha senhora preocupada com os afazeres de "Um Pote de Margarina sem Sal", seja o homem feio de "O Amor dessa Mulher": Schultz os vê como à lente de um microscópio, procurando descobrir-lhes as feridas.
Suas descrições são toscas, cheias de arestas, especialmente quando o texto está em primeira pessoa. As comparações os bestializam: pernas "de formiga", ancas "de égua". A comparação óbvia é com Rubem Fonseca.
Bettega vai além. Em vez de bestializar seus indivíduos, ele os "mineraliza". Em "Auto-Retrato", em que narra uma situação ao modo de uma natureza-morta, descreve os personagens como se estivessem se desgrudando da casa em que moram. Parecem viver em tamanha apatia, numa inércia tão acaçapante, que viram coisas.
Paradoxalmente, porém, as "coisas" de Bettega são mais pungentes do que os seres de Schultz. Isso ocorre porque o primeiro, ao contrário do segundo, procura se posicionar no mesmo nível de suas criaturas (possível exceção é "Auto-Retrato"). Há um carinho implícito, pois a desilusão delas parece ser compreendida por seu autor, mesmo nos momentos em que estão prestes a se desfazer, sendo engolfadas pela paisagem.
Enquanto os personagens se apagam, as coisas tendem a se personificar, como a cidade que nunca acaba de "Exílio" ou a casa que altera sua própria arquitetura em "O Rosto". É forçoso lembrar, no último caso, Júlio Cortazar. Mas o elemento fantástico, aliado ao patético de muitas situações, como a do homem que acorda com um crocodilo grudado às suas costas, assemelha-se mais ao humor sombrio de alguns russos: o Gogol de "O Nariz" e, claro, o Dostoiévski de "O Crocodilo".
Há vacilos de ambas as partes. Schultz poderia superar a influência de Rubem Fonseca e procurar encontrar uma voz mais pessoal e distintiva. Bettega às vezes se deixa levar pelo aspecto fácil contido na noção de "realismo fantástico". Descontando alguns pecadilhos, os dois revelam que têm armas poderosas, capazes de lhes permitir vôos mais altos.


O Amor dessa Mulher    
Autor: Roberto Schultz
Editora: Literalis
Quanto: R$ 20 (144 págs.)



Deixe o Quarto como Está   
Autor: Amilcar Bettega Barbosa
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 23 (128 págs.)




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