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"O AMOR DESSA MULHER" E "DEIXE O QUARTO COMO ESTÁ"
Contos gaúchos espelham imobilismo de personagens
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Dois autores dão mais um
passo com o propósito de
firmar-se na seara dos bons da literatura brasileira. Coincidentemente ambos são gaúchos, têm a
mesma idade (nascidos em 64) e
agora exibem seus experimentos
na arte do conto. São Roberto
Schultz ("O Amor dessa Mulher")
e Amilcar Bettega Barbosa ("Deixe o Quarto como Está").
Há outro ponto em comum.
Suas histórias parecem tratar de
personagens e situações estáticas,
presas a um estranho imobilismo.
O conflito, quando existe, se esconde por baixo dessa capa de estagnação. Schultz definiu bem o
quadro ao fazer um personagem
recitar versos de Mário Quintana:
"Que esta minha paz e este meu
amado silêncio/ Não iludam a
ninguém/ Não é a paz de uma cidade bombardeada e deserta/
Nem tampouco a paz compulsória dos cemitérios/ Acho-me relativamente feliz/ Porque nada de
exterior me acontece.../ Mas,/ Em
mim, na minha alma, / Pressinto
que vou ter um terremoto!".
As coincidências terminam aí,
pois, enquanto Schultz observa
seus personagens do alto, Bettega
prefere se posicionar ao lado deles. Explico. O olhar em geral desapiedado de Schultz apequena
suas criaturas, achata-as. Sua pena procura o ridículo e convida ao
riso. Seja a velha senhora preocupada com os afazeres de "Um Pote de Margarina sem Sal", seja o
homem feio de "O Amor dessa
Mulher": Schultz os vê como à
lente de um microscópio, procurando descobrir-lhes as feridas.
Suas descrições são toscas,
cheias de arestas, especialmente
quando o texto está em primeira
pessoa. As comparações os bestializam: pernas "de formiga", ancas "de égua". A comparação óbvia é com Rubem Fonseca.
Bettega vai além. Em vez de bestializar seus indivíduos, ele os
"mineraliza". Em "Auto-Retrato", em que narra uma situação ao
modo de uma natureza-morta,
descreve os personagens como se
estivessem se desgrudando da casa em que moram. Parecem viver
em tamanha apatia, numa inércia
tão acaçapante, que viram coisas.
Paradoxalmente, porém, as
"coisas" de Bettega são mais pungentes do que os seres de Schultz.
Isso ocorre porque o primeiro, ao
contrário do segundo, procura se
posicionar no mesmo nível de
suas criaturas (possível exceção é
"Auto-Retrato"). Há um carinho
implícito, pois a desilusão delas
parece ser compreendida por seu
autor, mesmo nos momentos em
que estão prestes a se desfazer,
sendo engolfadas pela paisagem.
Enquanto os personagens se
apagam, as coisas tendem a se
personificar, como a cidade que
nunca acaba de "Exílio" ou a casa
que altera sua própria arquitetura
em "O Rosto". É forçoso lembrar,
no último caso, Júlio Cortazar.
Mas o elemento fantástico, aliado
ao patético de muitas situações,
como a do homem que acorda
com um crocodilo grudado às
suas costas, assemelha-se mais ao
humor sombrio de alguns russos:
o Gogol de "O Nariz" e, claro, o
Dostoiévski de "O Crocodilo".
Há vacilos de ambas as partes.
Schultz poderia superar a influência de Rubem Fonseca e procurar
encontrar uma voz mais pessoal e
distintiva. Bettega às vezes se deixa levar pelo aspecto fácil contido
na noção de "realismo fantástico". Descontando alguns pecadilhos, os dois revelam que têm armas poderosas, capazes de lhes
permitir vôos mais altos.
O Amor dessa Mulher
Autor: Roberto Schultz
Editora: Literalis
Quanto: R$ 20 (144 págs.)
Deixe o Quarto como Está
Autor: Amilcar Bettega Barbosa
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 23 (128 págs.)
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