São Paulo, quinta-feira, 08 de julho de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Angolano acha pátria no português

LUIZ FERNANDO VIANNA
DA SUCURSAL DO RIO

A frase do português Fernando Pessoa cantada pelo brasileiro Caetano Veloso é perfeita para o angolano José Eduardo Agualusa: "Minha pátria é minha língua". Agualusa já escreveu um livro sobre Angola em Parati, um sobre o Rio em Berlim, um sobre Goa em Lisboa. Seu único porto seguro é a língua portuguesa.
"Ela é maior do que os nossos países. Eu percebo isso quando viajo para lugares remotos e encontro alguém falando português: um cara do Mato Grosso passa a ser meu melhor amigo", diz Agualusa, 43, por telefone, de Luanda, a capital angolana. Ele pratica a lusofonia sem gostar da palavra. "Ela parece dizer respeito somente aos portugueses. Não exprime a imensidade do mundo de língua portuguesa."
Agualusa divide hoje com Caetano Veloso a mesa-redonda "África e Brasil: Verdades Tropicais" na Flip. Caetano -ao lado de Chico Buarque, Rubem Fonseca, Jorge Amado, Guimarães Rosa- está entre as grandes admirações brasileiras do angolano.
"[Dividir a mesa com Caetano] É uma responsabilidade, dá medo. Será melhor se o público tiver a possibilidade de fazer perguntas", anseia Agualusa, um dos grandes autores africanos de língua portuguesa, ao lado do compatriota Pepetela e do moçambicano Mia Couto, entre outros.
Ele lerá um trecho de "O Vendedor de Passados", seu mais recente romance, o quinto a ser lançado no Brasil pela Gryphus. O livro tem como protagonista Félix Ventura, um homem que oferece genealogias a quem quer reinventar sua biografia. Uma trama criada para satirizar a rápida mudança de sistema econômico de Angola, onde, segundo ele, "as mesmas pessoas que eram marxistas defendem hoje o capitalismo mais selvagem".
"Surgiu de repente uma alta burguesia, constituída em grande medida de pessoas que fizeram sua riqueza de forma não muito lícita. Portanto estão à procura de um passado mais nobre, aristocrata", diz Agualusa, ressaltando que ex-líderes comunistas são hoje "alguns dos mais prósperos empresários angolanos".
Nitidamente, Agualusa não é um nostálgico do regime comunista, instituído em 1975 pelo grupo que liderou a guerra pela independência de Portugal. "Eu vivi na época do partido único e não recomendo a ninguém", diz. Mas o incipiente capitalismo aprofundou, segundo ele, a distância entre ricos e pobres e tornou a vida em Luanda muito cara: ele paga US$ 1.500 mensais de aluguel (cerca de R$ 4.560).
Para o escritor, a situação atual confirma a vocação para o absurdo que tem Angola. Daí surgiu a trama de "O Vendedor de Passados" e o inerente desejo de homenagear Jorge Luis Borges, um de seus ídolos e mestre na arte de esgrimir delírios. Na pele de uma osga (lagartixa), o escritor argentino é usado como narrador do romance.
"É uma lagartixa angolana, o que não deveria ser do agrado do Borges", brinca Agualusa, referindo-se ao conservadorismo do autor de "O Aleph". "Mas acho que fui simpático. Fiz com que ele reencarnasse entre livros. O inferno seria em algum lugar bem longe dos livros."
Esse descompromisso com a verossimilhança, a fusão entre imaginação e realidade, é uma das marcas da obra de Agualusa. Por exemplo: seu livro mais exportado, "Nação Crioula" (1997) -escrito em boa parte em Parati-, tem como narrador Fradique Mendes, um personagem de Eça de Queiroz.
"Para quem está interessado em encontrar a verdade, é melhor ler Paulo Coelho. Nada contra, mas ele vende seus livros dizendo: "Tenho o mapa do tesouro". Acho que a grande literatura não tem respostas", afirma.
Neto de carioca e filho de português, o escritor angolano viveu, no final da década de 90, dois anos e meio no Rio. "Foram os anos mais felizes da minha vida. Eu daria um bom carioca", suspira. Mas, até por gostar tanto da cidade, ele demonstra preocupação com a situação das favelas, que conheceu bem para escrever o romance "O Ano em que Zumbi Tomou o Rio" (2002).
"Se há alguma originalidade no livro, não está em falar de uma guerra nas favelas, mas de uma guerra politizada, o que seria extremamente perigoso. Felizmente ainda não apareceu nenhum Che Guevara do tráfico", diz ele.


Texto Anterior: Livro mimetiza movimento de fluxo do mar
Próximo Texto: Flipetas
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.