São Paulo, quinta-feira, 08 de julho de 2004

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MÚSICA

Momentos cruciais dos dois artistas de bossa e samba-soul são reeditados

Sons "doidos" de Valle e Donato voltam a convergir

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

Uma coincidência reaproxima em 2004 João Donato e Marcos Valle, dois ases da estranha convergência que se formou, no Brasil dos anos 70, entre bossa nova, pop, suingue, black music, samba, samba-soul e música eletrônica (sim, já existia isso há 30 anos).
O selo carioca Dubas, do compositor Ronaldo Bastos, relança "Lugar Comum" (75), de Donato. A plácida capa original foi inexplicavelmente adulterada, mas o CD resgata do abandono um dos marcos musicais daquela década. É o mitológico encontro doidão entre o bossa-novista de primeira hora e o tropicalista Gilberto Gil, co-autor de oito das 12 faixas.
Ali está o clássico soul-bossa elétrica "Bananeira", que fora "Villa Grazia" (63) e então ganhava a letra malucona que depois rodaria mundo. Donato conta, em texto no CD, que a letra foi concebida por Gil na presença não só dele, como de Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia.
Donato era músico de Gal, em shows e no LP "Cantar" (74), produzido por Caetano. "Barato Total", de Gil, era o hino maior daqueles dias "eletricomunitários".
Mas onde entra Marcos Valle? É que se deveu a ele a permanência de Donato no Brasil, após anos passados nos EUA. Segundo Valle, o amigo que conhecera em Los Angeles estava aqui só de passagem, "atrás de uma namorada". Marcos correu à sua gravadora, Odeon (hoje EMI), doido para convencê-la a gravar Donato.
"[O diretor] Milton Miranda recusou, falou que Donato era maluco. Acabou topando, desde que eu fosse o produtor do disco", conta Valle. Assim nasceu "Quem É Quem" (73, relançado pela EMI há dois anos), primeiro trabalho cantado de João Donato.
"Ele estava numa fase bem difícil, tive que controlá-lo. Ficava atrás dele 24 horas por dia. Sou mais calmo, minhas loucuras não passam do ponto", lembra Valle. Enquanto cuidava de Donato, que "no fundo é uma criança, como eu", compunha a trilha do infantil "Vila Sésamo" (74), outro clássico obscuro, mas indelével.
Hoje, se orgulha: "A partir disso Donato nunca mais foi embora do Brasil". Mas Valle foi. Saiu em 74 para auto-exílio de quase uma década. Da parceria com Donato, deixou ainda o alucinado samba-soul "Não Tem Nada, Não" (73).
Essa é uma das 36 faixas de "Antologia", primeira revisão em regra dos anos 63-74 de Valle, orientada na EMI pelo músico Charles Gavin. Os dados cronológicos no encarte do CD estão quase todos errados, mas a antologia traça painel abrangente da evolução do artista, da bossa comportada ao samba-soul de piano elétrico que Valle ensinou a Donato, que Donato ensinou a Valle.
Falando do LP "Previsão do Tempo" (73), Valle lembra que foi todo moldado no groove elétrico do grupo Azimuth, à exceção dos sambas "Flamengo Até Morrer" e "Samba Fatal" (ambos ausentes da seleção de Gavin). Essas tinham acompanhamento d'O Terço, um grupo de rock progressivo -naqueles anos tudo se misturava, a música era coletiva.
"Flamengo Até Morrer" foi tido como hino de adesão à ditadura -equívoco, pois era ácida gozação. "Samba Fatal", Valle conta agora, homenageava o poeta tropicalista Torquato Neto, que acabara de se suicidar. Do derrame do final do período Médici, nascia o individualismo atroz que dominaria a MPB dali em diante.
Hoje, acaba de sair no Brasil, pelo selo Deckdisc, CD novo de Donato com a cantora Wanda Sá. Foi bancado no exterior, assim como "Contrastes", de Valle, que espera lançamento nacional pela Trama.
Enquanto seu disco não vem, Valle sonha: "Outro dia Donato perguntou se não quero fazer um "Quem É Quem 2". Falei: "Vamos embora'". Donato prometeu falar à Folha na manhã de quarta. Mas não atendeu à ligação.


Lugar Comum     
Artista: João Donato
Lançamento: Dubas/Universal
Quanto: R$ 30, em média

Antologia    
Artista: Marcos Valle
Lançamento: EMI
Quanto: R$ 50, em média (CD duplo)



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