|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MÚSICA
Momentos cruciais dos dois artistas de bossa e samba-soul são reeditados
Sons "doidos" de Valle e Donato voltam a convergir
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL
Uma coincidência reaproxima
em 2004 João Donato e Marcos
Valle, dois ases da estranha convergência que se formou, no Brasil dos anos 70, entre bossa nova,
pop, suingue, black music, samba, samba-soul e música eletrônica (sim, já existia isso há 30 anos).
O selo carioca Dubas, do compositor Ronaldo Bastos, relança
"Lugar Comum" (75), de Donato.
A plácida capa original foi inexplicavelmente adulterada, mas o
CD resgata do abandono um dos
marcos musicais daquela década.
É o mitológico encontro doidão
entre o bossa-novista de primeira
hora e o tropicalista Gilberto Gil,
co-autor de oito das 12 faixas.
Ali está o clássico soul-bossa
elétrica "Bananeira", que fora
"Villa Grazia" (63) e então ganhava a letra malucona que depois
rodaria mundo. Donato conta,
em texto no CD, que a letra foi
concebida por Gil na presença
não só dele, como de Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia.
Donato era músico de Gal, em
shows e no LP "Cantar" (74), produzido por Caetano. "Barato Total", de Gil, era o hino maior daqueles dias "eletricomunitários".
Mas onde entra Marcos Valle? É
que se deveu a ele a permanência
de Donato no Brasil, após anos
passados nos EUA. Segundo Valle, o amigo que conhecera em Los
Angeles estava aqui só de passagem, "atrás de uma namorada".
Marcos correu à sua gravadora,
Odeon (hoje EMI), doido para
convencê-la a gravar Donato.
"[O diretor] Milton Miranda recusou, falou que Donato era maluco. Acabou topando, desde que
eu fosse o produtor do disco",
conta Valle. Assim nasceu "Quem
É Quem" (73, relançado pela EMI
há dois anos), primeiro trabalho
cantado de João Donato.
"Ele estava numa fase bem difícil, tive que controlá-lo. Ficava
atrás dele 24 horas por dia. Sou
mais calmo, minhas loucuras não
passam do ponto", lembra Valle.
Enquanto cuidava de Donato, que
"no fundo é uma criança, como
eu", compunha a trilha do infantil
"Vila Sésamo" (74), outro clássico
obscuro, mas indelével.
Hoje, se orgulha: "A partir disso
Donato nunca mais foi embora
do Brasil". Mas Valle foi. Saiu em
74 para auto-exílio de quase uma
década. Da parceria com Donato,
deixou ainda o alucinado samba-soul "Não Tem Nada, Não" (73).
Essa é uma das 36 faixas de "Antologia", primeira revisão em regra dos anos 63-74 de Valle,
orientada na EMI pelo músico
Charles Gavin. Os dados cronológicos no encarte do CD estão quase todos errados, mas a antologia
traça painel abrangente da evolução do artista, da bossa comportada ao samba-soul de piano elétrico que Valle ensinou a Donato,
que Donato ensinou a Valle.
Falando do LP "Previsão do
Tempo" (73), Valle lembra que foi
todo moldado no groove elétrico
do grupo Azimuth, à exceção dos
sambas "Flamengo Até Morrer" e
"Samba Fatal" (ambos ausentes
da seleção de Gavin). Essas tinham acompanhamento d'O Terço, um grupo de rock progressivo
-naqueles anos tudo se misturava, a música era coletiva.
"Flamengo Até Morrer" foi tido
como hino de adesão à ditadura
-equívoco, pois era ácida gozação. "Samba Fatal", Valle conta
agora, homenageava o poeta tropicalista Torquato Neto, que acabara de se suicidar. Do derrame
do final do período Médici, nascia
o individualismo atroz que dominaria a MPB dali em diante.
Hoje, acaba de sair no Brasil, pelo selo Deckdisc, CD novo de Donato com a cantora Wanda Sá. Foi
bancado no exterior, assim como
"Contrastes", de Valle, que espera
lançamento nacional pela Trama.
Enquanto seu disco não vem,
Valle sonha: "Outro dia Donato
perguntou se não quero fazer um
"Quem É Quem 2". Falei: "Vamos
embora'". Donato prometeu falar
à Folha na manhã de quarta. Mas
não atendeu à ligação.
Lugar Comum
Artista: João Donato
Lançamento: Dubas/Universal
Quanto: R$ 30, em média
Antologia
Artista: Marcos Valle
Lançamento: EMI
Quanto: R$ 50, em média (CD duplo)
Texto Anterior: Flipetas Próximo Texto: Teatro: Grupo encena contos sobre Justiça Índice
|