São Paulo, terça-feira, 08 de agosto de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Artigo/Réplica

Coutinho erra ao criminalizar vítimas

RICARDO PEIDRÓ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Lamento ter de abordar um assunto resolvido há mais de 25 séculos (justamente ao analisar outro conflito civil), a análise objetiva de acontecimentos contemporâneos e de suas causas (Tucídides), mas o afã deformador do colunista João Pereira Coutinho não me deixa alternativa.
Com efeito, dá início a seu artigo do último dia 26 de julho (Ilustrada, pág. E2) assinalando que a Guerra Civil Espanhola teve uma "historiografia oficial". A única historiografia oficial que houve entre 1939 e 1975 foi a do regime de Franco, com base em argumentos que subjazem nas teses do sr. Coutinho, espero que de forma não-intencional. Para o regime, a guerra foi uma cruzada (com tudo o que implica este aterrorizante substantivo), portanto, uma luta do bem contra o mal.
Ao contrário, o que o sr. Coutinho define como "escrito pelos perdedores" é, na realidade, a historiografia dos abundantes hispanistas, sobretudo franceses, britânicos e norte-americanos, o que inclui, obviamente, o sr. Stanley Payne, por ele citado, de cuja leitura pude desfrutar e a quem também me orgulho de conhecer pessoalmente.
Foram eles, portanto, precisamente os ganhadores da Segunda Guerra Mundial, os que se ocuparam do conflito civil espanhol. Não os espanhóis que perderam a guerra, condenados ao silêncio, ao exílio, à prisão ou às execuções e desaparecimentos. Não sei se é a eles a que Coutinho se refere ao falar desta "historiografia preguiçosa e ideologicamente comprometida".
O fim do conflito no qual ambos os lados dividiam a culpa pelos excessos (incluindo García Lorca e Ramiro de Maeztu) dá início à brutal repressão do pós-guerra franquista, cuja declaração de vitória começa assim: "Cativo e desarmado, o Exército Vermelho...".
O regime de Franco viveu, de fato, isolado como um pária até 1953, privando a Espanha não apenas de seu entroncamento com as democracias vitoriosas da Segunda Guerra Mundial mas também dos fluxos financeiros que ajudaram na sua reconstrução. Somente a incipiente dinâmica da Guerra Fria permite uma ruptura em 1953, ao ser assinada a concordata com o Vaticano e o primeiro acordo com os Estados Unidos.
Afirmar que em 1934 começa, na verdade, a Guerra Civil é utilizar, uma vez mais e espero que também sem intenção, a argumentação dos revisionistas. Uma guerra civil requer dois grupos com forças armadas organizadas. Foi isso o que aconteceu em 1936, posto que o levante militar falhou porque uma parte das Forças Armadas se manteve fiel ao regime constitucional.
Por fim, o sr. Coutinho insiste em falar em bons e maus. Os espanhóis de hoje preferem analisar os fatos com rigor, o que exige, entre outras coisas, saber quem está enterrado nas fossas comuns e resgatar do esquecimento aqueles cujo único crime foi se manterem fiéis a um regime constitucional e que, por isso, foram mortos, encarcerados, exilados ou, na melhor das hipóteses, condenados ao silêncio.
Este é o sentido de uma resolução do Congresso dos Deputados, que declarou o ano em curso como "ano da memória histórica". Esta iniciativa tem o apoio da maioria constitucional. O questionamento deste exercício de homenagem e lembrança históricas só se produziu naqueles setores que utilizam a história com fins evidentes, seguindo a velha tática de criminalizar as vítimas.


RICARDO PEIDRÓ é embaixador da Espanha no Brasil

Texto Anterior: Mônica Bergamo
Próximo Texto: Festivais de jazz crescem fora do circuito Rio-SP
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.