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Artigo/Réplica
Coutinho erra ao criminalizar vítimas
RICARDO PEIDRÓ
ESPECIAL PARA A FOLHA
Lamento ter de abordar
um assunto resolvido
há mais de 25 séculos
(justamente ao analisar outro
conflito civil), a análise objetiva
de acontecimentos contemporâneos e de suas causas (Tucídides), mas o afã deformador do colunista João Pereira Coutinho não me deixa alternativa.
Com efeito, dá início a seu artigo do último dia 26 de julho
(Ilustrada, pág. E2) assinalando que a Guerra Civil Espanhola teve uma "historiografia oficial". A única historiografia oficial que houve entre 1939 e
1975 foi a do regime de Franco,
com base em argumentos que
subjazem nas teses do sr. Coutinho, espero que de forma
não-intencional. Para o regime,
a guerra foi uma cruzada (com
tudo o que implica este aterrorizante substantivo), portanto,
uma luta do bem contra o mal.
Ao contrário, o que o sr. Coutinho define como "escrito pelos perdedores" é, na realidade,
a historiografia dos abundantes hispanistas, sobretudo
franceses, britânicos e norte-americanos, o que inclui, obviamente, o sr. Stanley Payne,
por ele citado, de cuja leitura
pude desfrutar e a quem também me orgulho de conhecer
pessoalmente.
Foram eles, portanto, precisamente os ganhadores da Segunda Guerra Mundial, os que
se ocuparam do conflito civil
espanhol. Não os espanhóis
que perderam a guerra, condenados ao silêncio, ao exílio, à
prisão ou às execuções e desaparecimentos. Não sei se é a
eles a que Coutinho se refere
ao falar desta "historiografia
preguiçosa e ideologicamente
comprometida".
O fim do conflito no qual ambos os lados dividiam a culpa
pelos excessos (incluindo García Lorca e Ramiro de Maeztu)
dá início à brutal repressão do
pós-guerra franquista, cuja declaração de vitória começa assim: "Cativo e desarmado, o
Exército Vermelho...".
O regime de Franco viveu, de
fato, isolado como um pária até
1953, privando a Espanha não
apenas de seu entroncamento
com as democracias vitoriosas
da Segunda Guerra Mundial
mas também dos fluxos financeiros que ajudaram na sua reconstrução.
Somente a incipiente dinâmica da Guerra Fria permite
uma ruptura em 1953, ao ser
assinada a concordata com o
Vaticano e o primeiro acordo
com os Estados Unidos.
Afirmar que em 1934 começa, na verdade, a Guerra Civil é
utilizar, uma vez mais e espero
que também sem intenção, a
argumentação dos revisionistas. Uma guerra civil requer
dois grupos com forças armadas organizadas. Foi isso o que
aconteceu em 1936, posto que
o levante militar falhou porque
uma parte das Forças Armadas
se manteve fiel ao regime constitucional.
Por fim, o sr. Coutinho insiste em falar em bons e maus. Os
espanhóis de hoje preferem
analisar os fatos com rigor, o
que exige, entre outras coisas,
saber quem está enterrado nas
fossas comuns e resgatar do esquecimento aqueles cujo único
crime foi se manterem fiéis a
um regime constitucional e
que, por isso, foram mortos,
encarcerados, exilados ou, na
melhor das hipóteses, condenados ao silêncio.
Este é o sentido de uma resolução do Congresso dos Deputados, que declarou o ano em
curso como "ano da memória
histórica". Esta iniciativa tem o
apoio da maioria constitucional. O questionamento deste
exercício de homenagem e
lembrança históricas só se produziu naqueles setores que utilizam a história com fins evidentes, seguindo a velha tática
de criminalizar as vítimas.
RICARDO PEIDRÓ é embaixador da Espanha no
Brasil
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