UOL


São Paulo, segunda-feira, 08 de setembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NELSON ASCHER

Entre a poesia e o poder

Os poetas, dizia o inglês Percy Shelley (1792-1822), são os legisladores não reconhecidos do mundo. Coincidência ou não, sua profissão era escrever poemas. Talvez, se seu ramo fosse fazer pão, ele tivesse atribuído tal honraria aos padeiros. A sorte do mundo decorre justamente desse não reconhecimento, pois, se suas leis e a condução de seus negócios costumassem ser confiados aos artesãos da palavra, é bem capaz que já não existisse uma humanidade para a qual legislar.
Por outro lado, tampouco faltaram legisladores de verdade, ou seja, monarcas, chefes de Estado etc., que se dedicaram a compor poemas. Desde, pelo menos, o faraó Aquenaton que, em torno de 1370 a.C. escreveu um célebre hino ao sol, passando pelo rei Davi e diversos imperadores chineses, até chegar, no século 20, a Mao Tse-tung ou Ho Chi Minh e, entre os ainda vivos, ao papa atual, João Paulo 2º, não houve posições ou cargos altos demais para os versejadores, embora aqueles lembrados por suas qualidades literárias pertençam antes à categoria das exceções.
Uma dessas exceções foi Tchányang Gyatsô (1683-1706, cujo nome significa "Oceano de Pura Melodia"), um tibetano que dividia o tempo entre suas ocupações favoritas (mulheres, versos, a arte de manejar o arco) e aquela que exerceu a contragosto: a de ser o sexto Dalai Lama.
Tchányang, que, uma vez "descoberto", fora empossado no palácio de Pótala em 1697, deveria fazer uma série de votos, alguns que não teve como evitar, mas renegou posteriormente, e outros aos quais se esquivou. A história, porém, devido ao sistema de governo tibetano na época, é mais complexa.
Normalmente, os líderes de povos e nações ou são escolhidos (às vezes por si mesmos) ou herdam seu trono. No Tibete, porém, depois que se estabeleceu a vertente local do budismo conhecida como lamaísmo, havia um modo apenas para se chegar ao trono : a reencarnação. Morto um Dalai Lama, os monges saíam país afora em busca de uma criança para cujo corpo seu espírito tivesse se mudado, algo indicado por sinais que apenas eles reconheceriam.
Os Dalai Lamas (título que queria dizer "oceano de sabedoria") não passam, portanto, de um único, o primeiro que, por seu turno, fora a encarnação do bodhisattva Avalokitesvara. Define-se bodhisattva como o ser vivo que, embora já pudesse ter atingido o estado de buda (iluminado ou desperto), condói-se dos sofrimentos do mundo a tal ponto que, para auxiliar os demais, adia a própria culminação. Avalokitesvara, o bodhisattva da compaixão, é também o patrono do Tibete.
Reencarnar em Tchányang não deve ter sido fácil e é provavelmente por isso que sua permanência num corpo rebelde acabou sendo tão breve. A região, ademais, passava então por uma crise que, a rigor, persiste até nossos dias. Espremido entre duas culturas hegemônicas, a da Índia e a da China, o Tibete vivia há séculos à sombra de uma terceira, a dos mongóis. Estes, que pouco antes haviam se convertido ao lamaísmo, protegiam-no dos chineses que os protegiam dos mongóis e ambos os povos absorviam através do país montanhês (que, no milênio anterior, formara um império hegemônico de curta duração) uma religião nascida na Índia.
Seu predecessor, o Grande Quinto Dalai Lama (que consolidara o poder secular e religioso), morrera 15 anos antes, em 1682, mas, como num filme de Kurosawa ("Kagemusha"), o regente, ou "Desi" (que, segundo alguns historiadores, era seu filho), mantendo ardilosamente sua morte em segredo (e dizendo que o Dalai Lama se recolhera para meditar a sós), reinara durante esse tempo em seu nome. No intervalo, o sexto Dalai Lama submetia-se à exigente educação que seu futuro requeria, mas, quando a morte do Grande Quinto estava prestes a ser descoberta, o "Desi" não teve escolha e anunciou, antes que o proprietário do novo corpo tivesse sido completamente preparado, a reencarnação.
Não obstante o jovem Dalai Lama revelar-se extremamente inteligente e culto, provou-se impossível confiná-lo ao palácio e às suas funções oficiais. Quem quisesse encontrá-lo deveria procurar nas tavernas e bordéis de Lhasa, onde seus breves poemas, formados quase sempre de quatro versos não rimados de seis sílabas e modelados nas canções populares anônimas, eram conhecidos e cantados pelos frequentadores. Uma de suas cerca de 60 composições que sobreviveram diz o seguinte: "Tudo aquilo que falam/ Sobre mim é verdade:/ Três passos me conduzem/ Daqui para o bordel".
Numa sociedade que atribuía ao monarca/sumo sacerdote uma condição divina, tal tipo de popularidade não seria bem-vinda. Ao fim e ao cabo, seu descaso pelos assuntos do Estado pôs em perigo a estabilidade frágil do país e, na ausência de qualquer mecanismo capaz de substituí-lo, o regente atentou, sem sucesso, contra sua vida, contribuindo assim para piorar a crise que se resolveu com a ocupação comandada por um chefe guerreiro mongol, com a execução do "Devi" e o "desaparecimento" do Sexto Dalai Lama que, decerto assassinado, converteu-se em lenda.
O curioso dessa história aparentemente distante e exótica é o quanto ela tem de comum e corriqueiro. Com pequenas alterações ou adaptações e um quê de cor local, ela consiste na versão centro-asiática, por exemplo, da juventude do rei inglês Henrique 5º, conforme contada por Shakespeare, ou da trajetória, no século 20, de Carlos 2º da Romênia, outro frequentador de bordéis, que abdicou do trono duas vezes e, perto do final da Segunda Guerra, casou-se com sua amante no Copacabana Palace.


Texto Anterior: Dramaturgia: Peça "O Fingidor" chega à sala de aula
Próximo Texto: Panorâmica - Evento: Palestra discute o amor como elo social
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.