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NELSON ASCHER
Entre a poesia e o poder
Os poetas, dizia o inglês Percy
Shelley (1792-1822), são os
legisladores não reconhecidos do
mundo. Coincidência ou não, sua
profissão era escrever poemas.
Talvez, se seu ramo fosse fazer
pão, ele tivesse atribuído tal
honraria aos padeiros. A sorte do
mundo decorre justamente desse
não reconhecimento, pois, se suas
leis e a condução de seus negócios
costumassem ser confiados aos
artesãos da palavra, é bem capaz
que já não existisse uma humanidade para a qual legislar.
Por outro lado, tampouco faltaram legisladores de verdade, ou
seja, monarcas, chefes de Estado
etc., que se dedicaram a compor
poemas. Desde, pelo menos, o faraó Aquenaton que, em torno de
1370 a.C. escreveu um célebre hino ao sol, passando pelo rei Davi e
diversos imperadores chineses,
até chegar, no século 20, a Mao
Tse-tung ou Ho Chi Minh e, entre
os ainda vivos, ao papa atual,
João Paulo 2º, não houve posições
ou cargos altos demais para os
versejadores, embora aqueles
lembrados por suas qualidades literárias pertençam antes à categoria das exceções.
Uma dessas exceções foi Tchányang Gyatsô (1683-1706, cujo nome significa "Oceano de Pura
Melodia"), um tibetano que dividia o tempo entre suas ocupações
favoritas (mulheres, versos, a arte
de manejar o arco) e aquela que
exerceu a contragosto: a de ser o
sexto Dalai Lama.
Tchányang, que, uma vez "descoberto", fora empossado no palácio de Pótala em 1697, deveria
fazer uma série de votos, alguns
que não teve como evitar, mas renegou posteriormente, e outros
aos quais se esquivou. A história,
porém, devido ao sistema de governo tibetano na época, é mais
complexa.
Normalmente, os líderes de povos e nações ou são escolhidos (às
vezes por si mesmos) ou herdam
seu trono. No Tibete, porém, depois que se estabeleceu a vertente
local do budismo conhecida como
lamaísmo, havia um modo apenas para se chegar ao trono : a
reencarnação. Morto um Dalai
Lama, os monges saíam país afora em busca de uma criança para
cujo corpo seu espírito tivesse se
mudado, algo indicado por sinais
que apenas eles reconheceriam.
Os Dalai Lamas (título que queria dizer "oceano de sabedoria")
não passam, portanto, de um único, o primeiro que, por seu turno,
fora a encarnação do bodhisattva
Avalokitesvara. Define-se bodhisattva como o ser vivo que, embora já pudesse ter atingido o estado
de buda (iluminado ou desperto),
condói-se dos sofrimentos do
mundo a tal ponto que, para auxiliar os demais, adia a própria
culminação. Avalokitesvara, o
bodhisattva da compaixão, é
também o patrono do Tibete.
Reencarnar em Tchányang não
deve ter sido fácil e é provavelmente por isso que sua permanência num corpo rebelde acabou
sendo tão breve. A região, ademais, passava então por uma crise que, a rigor, persiste até nossos
dias. Espremido entre duas culturas hegemônicas, a da Índia e a
da China, o Tibete vivia há séculos à sombra de uma terceira, a
dos mongóis. Estes, que pouco antes haviam se convertido ao lamaísmo, protegiam-no dos chineses que os protegiam dos mongóis
e ambos os povos absorviam através do país montanhês (que, no
milênio anterior, formara um império hegemônico de curta duração) uma religião nascida na Índia.
Seu predecessor, o Grande
Quinto Dalai Lama (que consolidara o poder secular e religioso),
morrera 15 anos antes, em 1682,
mas, como num filme de Kurosawa ("Kagemusha"), o regente, ou
"Desi" (que, segundo alguns historiadores, era seu filho), mantendo ardilosamente sua morte
em segredo (e dizendo que o Dalai Lama se recolhera para meditar a sós), reinara durante esse
tempo em seu nome. No intervalo, o sexto Dalai Lama submetia-se à exigente educação que seu futuro requeria, mas, quando a
morte do Grande Quinto estava
prestes a ser descoberta, o "Desi"
não teve escolha e anunciou, antes que o proprietário do novo
corpo tivesse sido completamente
preparado, a reencarnação.
Não obstante o jovem Dalai Lama revelar-se extremamente inteligente e culto, provou-se impossível confiná-lo ao palácio e às
suas funções oficiais. Quem quisesse encontrá-lo deveria procurar nas tavernas e bordéis de Lhasa, onde seus breves poemas, formados quase sempre de quatro
versos não rimados de seis sílabas
e modelados nas canções populares anônimas, eram conhecidos e
cantados pelos frequentadores.
Uma de suas cerca de 60 composições que sobreviveram diz o seguinte: "Tudo aquilo que falam/
Sobre mim é verdade:/ Três passos
me conduzem/ Daqui para o bordel".
Numa sociedade que atribuía
ao monarca/sumo sacerdote uma
condição divina, tal tipo de popularidade não seria bem-vinda. Ao
fim e ao cabo, seu descaso pelos
assuntos do Estado pôs em perigo
a estabilidade frágil do país e, na
ausência de qualquer mecanismo
capaz de substituí-lo, o regente
atentou, sem sucesso, contra sua
vida, contribuindo assim para
piorar a crise que se resolveu com
a ocupação comandada por um
chefe guerreiro mongol, com a
execução do "Devi" e o "desaparecimento" do Sexto Dalai Lama
que, decerto assassinado, converteu-se em lenda.
O curioso dessa história aparentemente distante e exótica é o
quanto ela tem de comum e corriqueiro. Com pequenas alterações
ou adaptações e um quê de cor local, ela consiste na versão centro-asiática, por exemplo, da juventude do rei inglês Henrique 5º,
conforme contada por Shakespeare, ou da trajetória, no século
20, de Carlos 2º da Romênia, outro frequentador de bordéis, que
abdicou do trono duas vezes e,
perto do final da Segunda Guerra, casou-se com sua amante no
Copacabana Palace.
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