São Paulo, sábado, 08 de setembro de 2007

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"Conheci os carrascos", diz escritor

Jonathan Littell comenta as influências para escrever "As Benevolentes" e explica por que optou por um personagem não-realista

"Na Alemanha já se fala há muito tempo abertamente sobre os temas difíceis. Mas há questões específicas que ainda incomodam"

DA REPORTAGEM LOCAL

"Primeiro monumento literário do século 21" e "novo "Guerra e Paz'" são apenas alguns dos elogios superlativos que a obra de Jonathan Littell já recebeu. Admirador de Georges Bataille, Jean Genet, Melville e Kafka, o autor só tinha em sua bibliografia "Bad Voltage", um "romance cyberpunk" lançado em 1989, quando tinha 22 anos (hoje está com 39).
Nascido em Nova York e criado na França, o escritor estudou na Universidade Yale (EUA) antes de se dedicar a ações humanitárias. O próximo passo foi um mergulho em pesquisas de campo que o levaram a locais como Ucrânia, Stalingrado (atual Volgogrado) e Polônia. Também se dedicou à literatura sobre o assunto, dando preferência à abordagem dos novos historiadores. (MS)

FOLHA - Max Aue, o personagem do seu livro, é um oficial nazista intelectual, complexo e ambíguo. Muito diferente do personagem retratado por Hannah Arendt em "Eichmann em Jerusalém", que era apenas um burocrata medíocre...
LITTELL
- É verdade que são completamente diferentes. Eichmann não poderia falar sobre as coisas que se passaram da mesma maneira que Max. Tipos como Eichmann ou Rudolf Hess são capazes apenas de produzir um discurso absolutamente vazio. Queria um narrador que se desse conta da realidade estando no interior dos fatos. É por isso que optei por um narrador que não fosse realista. Isso me permitiu ter alguém ao mesmo tempo dentro do sistema e que fosse capaz de observá-lo friamente, explicá-lo. Um nazista que fale assim é uma invenção puramente literária.

FOLHA - Como o sr. recebeu as críticas ao seu livro por parte de personalidades como Claude Lanzmann [diretor do documentário "Shoah"]?
LITTELL
- Lanzmann acusou o livro de irrealismo. Se estão criticando o livro ou não, isso não faz diferença para mim. Na época do lançamento também não me importei. Jamais participei diretamente dessas discussões. Os franceses adoram um polêmica. Nesse aspecto eu não sou francês, só gosto de me dedicar às questões sérias [Littell obteve a nacionalidade francesa em 2007, depois de ter o pedido negado duas vezes].

FOLHA - A sua pretensão inicial era escrever um "tour de force", um livro de 900 páginas?
LITTELL
- Quem falou em "tour de force" foi você... Não, só me dei conta do tamanho que o livro teria quando já estava escrevendo. Não imaginava que ficaria com esse porte.

FOLHA - E como o sr. vê o enorme sucesso do seu livro na França, de crítica e público?
LITTELL
- Não tenho a menor idéia (risos). Não esperava, foi uma surpresa.

FOLHA - O sr. participou durante muitos anos de ações humanitárias. Isso ajudou para a criação do livro?
LITTELL
- Participar das ações humanitárias não ajudou, mas sim o fato de trabalhar em situações de guerra, encontrar as pessoas nos locais. Conheci os carrascos. Isso me deu uma experiência muita direta com pessoas como as que eu descrevo no meu livro.

FOLHA - O Holocausto e o período nazista eram tratados com muita dificuldade na Europa. O seu livro poderia ter sido escrito há 15, 20 anos? Teria tido a mesma repercussão?
LITTELL
- Na Alemanha já se fala há muito tempo abertamente sobre os temas difíceis. Mas há questões específicas que ainda incomodam. Hoje, os grandes assuntos que irritam estão, por exemplo, no filme "A Queda! As Últimas Horas de Hitler", de Oliver Hirschbiegel, que causou um grande escândalo. O grande tema que os alemães até agora não abordaram francamente é a questão de seu próprio sentimento de vitimização. Eles também sofreram muito, principalmente os alemães do leste, que foram massacrados pelos soviéticos que invadiam o país. É um assunto muito difícil de abordar, quem tentou foi desestimulado. Mas é um problema real, é como uma ferida que não se cura. Agora existe mais espaço para o debate, como prova o filme "A Queda!" ou o caso do escritor Günter Grass. Acho que o meu livro se insere nesse processo de discussão.

FOLHA - Quais foram suas principais fontes para o livro? O historiador Raul Hilberg parece ter sido essencial. E autores como Joachim Fest [autor de "No Bunker de Hitler"]?
LITTELL
- Hilberg foi uma grande referência, claro. Mas principalmente a nova geração de historiadores alemães, a que começou a publicar a partir do começo dos anos 90. Pessoas como Götz Aly. Nos EUA, Christopher Browning, que é o equivalente americano dessa geração. Das gerações mais antigas, nunca gostei muito do ponto de vista de Joachim Fest, mas Martin Broszat, por exemplo, acho muito importante.

FOLHA - O que o sr. achou das declarações do Prêmio Nobel Günter Grass, que causou polêmica ao relatar em 2006 que foi recrutado pela SS nazista aos 17 anos?
LITTELL
- O fato em si dele ter sido recrutado não tem nada de especial. O dado de que ele nunca falou disso é que é perturbador. Escondeu isso por 50 anos e nesse tempo criou polêmicas sobre o assunto. Se não fosse por isso, seria apenas um assunto pessoal. O papa Bento 16 também pertenceu à Luftwaffe (força aérea alemã). Ele desertou no final da guerra, mas quando participou das forças nazistas tinha exatamente a mesma idade de Grass, 16 anos.


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