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"Conheci os carrascos", diz escritor
Jonathan Littell comenta as influências para escrever "As Benevolentes" e explica por que optou por um personagem não-realista
"Na Alemanha já se fala há muito tempo abertamente sobre os temas difíceis. Mas há questões específicas que ainda incomodam"
DA REPORTAGEM LOCAL
"Primeiro monumento literário do século 21" e "novo
"Guerra e Paz'" são apenas alguns dos elogios superlativos
que a obra de Jonathan Littell
já recebeu. Admirador de Georges Bataille, Jean Genet, Melville e Kafka, o autor só tinha em
sua bibliografia "Bad Voltage",
um "romance cyberpunk" lançado em 1989, quando tinha 22
anos (hoje está com 39).
Nascido em Nova York e criado na França, o escritor estudou na Universidade Yale
(EUA) antes de se dedicar a
ações humanitárias. O próximo
passo foi um mergulho em pesquisas de campo que o levaram
a locais como Ucrânia, Stalingrado (atual Volgogrado) e Polônia. Também se dedicou à literatura sobre o assunto, dando
preferência à abordagem dos
novos historiadores.
(MS)
FOLHA - Max Aue, o personagem
do seu livro, é um oficial nazista intelectual, complexo e ambíguo.
Muito diferente do personagem retratado por Hannah Arendt em
"Eichmann em Jerusalém", que era
apenas um burocrata medíocre...
LITTELL - É verdade que são
completamente diferentes.
Eichmann não poderia falar sobre as coisas que se passaram
da mesma maneira que Max.
Tipos como Eichmann ou Rudolf Hess são capazes apenas de
produzir um discurso absolutamente vazio. Queria um narrador que se desse conta da realidade estando no interior dos fatos. É por isso que optei por um
narrador que não fosse realista.
Isso me permitiu ter alguém ao
mesmo tempo dentro do sistema e que fosse capaz de observá-lo friamente, explicá-lo. Um
nazista que fale assim é uma invenção puramente literária.
FOLHA - Como o sr. recebeu as críticas ao seu livro por parte de personalidades como Claude Lanzmann
[diretor do documentário "Shoah"]?
LITTELL - Lanzmann acusou o livro de irrealismo. Se estão criticando o livro ou não, isso não
faz diferença para mim. Na
época do lançamento também
não me importei. Jamais participei diretamente dessas discussões. Os franceses adoram
um polêmica. Nesse aspecto eu
não sou francês, só gosto de me
dedicar às questões sérias [Littell obteve a nacionalidade
francesa em 2007, depois de ter
o pedido negado duas vezes].
FOLHA - A sua pretensão inicial era
escrever um "tour de force", um livro de 900 páginas?
LITTELL - Quem falou em "tour
de force" foi você... Não, só me
dei conta do tamanho que o livro teria quando já estava escrevendo. Não imaginava que
ficaria com esse porte.
FOLHA - E como o sr. vê o enorme
sucesso do seu livro na França, de
crítica e público?
LITTELL - Não tenho a menor
idéia (risos). Não esperava, foi
uma surpresa.
FOLHA - O sr. participou durante
muitos anos de ações humanitárias.
Isso ajudou para a criação do livro?
LITTELL - Participar das ações
humanitárias não ajudou, mas
sim o fato de trabalhar em situações de guerra, encontrar as
pessoas nos locais. Conheci os
carrascos. Isso me deu uma experiência muita direta com
pessoas como as que eu descrevo no meu livro.
FOLHA - O Holocausto e o período
nazista eram tratados com muita dificuldade na Europa. O seu livro poderia ter sido escrito há 15, 20 anos?
Teria tido a mesma repercussão?
LITTELL - Na Alemanha já se fala
há muito tempo abertamente
sobre os temas difíceis. Mas há
questões específicas que ainda
incomodam. Hoje, os grandes
assuntos que irritam estão, por
exemplo, no filme "A Queda! As
Últimas Horas de Hitler", de
Oliver Hirschbiegel, que causou um grande escândalo. O
grande tema que os alemães até
agora não abordaram francamente é a questão de seu próprio sentimento de vitimização. Eles também sofreram muito, principalmente os alemães do leste, que foram massacrados pelos soviéticos que
invadiam o país. É um assunto
muito difícil de abordar, quem
tentou foi desestimulado. Mas
é um problema real, é como
uma ferida que não se cura.
Agora existe mais espaço para o
debate, como prova o filme "A
Queda!" ou o caso do escritor
Günter Grass. Acho que o meu
livro se insere nesse processo
de discussão.
FOLHA - Quais foram suas principais fontes para o livro? O historiador Raul Hilberg parece ter sido essencial. E autores como Joachim Fest
[autor de "No Bunker de Hitler"]?
LITTELL - Hilberg foi uma grande referência, claro. Mas principalmente a nova geração de
historiadores alemães, a que
começou a publicar a partir do
começo dos anos 90. Pessoas
como Götz Aly. Nos EUA,
Christopher Browning, que é o
equivalente americano dessa
geração. Das gerações mais antigas, nunca gostei muito do
ponto de vista de Joachim Fest,
mas Martin Broszat, por exemplo, acho muito importante.
FOLHA - O que o sr. achou das declarações do Prêmio Nobel Günter
Grass, que causou polêmica ao relatar em 2006 que foi recrutado pela
SS nazista aos 17 anos?
LITTELL - O fato em si dele ter sido recrutado não tem nada de
especial. O dado de que ele
nunca falou disso é que é perturbador. Escondeu isso por 50
anos e nesse tempo criou polêmicas sobre o assunto. Se não
fosse por isso, seria apenas um
assunto pessoal. O papa Bento
16 também pertenceu à Luftwaffe (força aérea alemã). Ele
desertou no final da guerra,
mas quando participou das forças nazistas tinha exatamente a
mesma idade de Grass, 16 anos.
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