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Como parar de se preocupar e amar o crash
ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas
²
O crash é bom. Vai nos dar
uma consciência mais humilde
de nossos limites. Até que enfim, algo está acontecendo, depois de meses de suspense.
O crash traz uma nova era;
terrível ou não, alguma verdade vem aí. Como chamá-la? A
pós-pós-modernidade? O pós-
apocalipse? A "desglobalização"? A única coisa que não será "pós" é a burguesia, claro.
Não há "pós-burguesia".
O crash é bom para fracassados, pois estão desculpados. O
crash é ruim para catastrofistas; que farão agora? O crash é
bom para o contato com o absurdo. Nesse sentido o crash é
filosófico. Beckett e Cioran serão livros de auto-ajuda.
Ficaremos mais espiritualizados com o crash. Num primeiro
momento, o horror, bolsas caindo, grana sumindo. Depois, a
paz do inevitável, a calma da
desgraça assumida -vejam o
rosto pacífico dos famintos do
Sudão.
A fome traz uma paz desesperançada. O crash trará uma súbita revivência de faquires. O
crash vai mostrar que a voracidade consumista não é a única
maneira de viver. Vai nos fazer
mais magros e mais frugais. Ficaremos mais elegantes com o
crash. Crash chic.
O crash nos mostrará que há
dois medos diversos: o medo
"mano" e medo "playboy", medo "periférico" e medo "Jardins". O maior medo é dos investidores -pobre já está no
crash há tempos, terá apenas
que realocar sua falta de recursos. O crash é bom porque vai
nos lembrar que não temos nada a perder, a não ser nossos liquidificadores.
O crash vai apagar um pouco
o sorriso dos colunáveis sorrindo nas revistas. O crash vai fechar a "Caras". O crash vai provocar uma onda de suicídios de
milionários diante dos olhos
calmos dos miseráveis vingados. Com menos importação de
BMWs, vai melhorar o trânsito
de São Paulo. O crash vai instilar humildade nas almas yuppies. Vai acabar com suspensórios floridos e gravatas de pintinhas...
O crash vai acabar com os
anúncios "globais" da IBM,
unindo negros felizes na Nigéria com amarelos felizes na
Mongólia e brancos felizes no
Canadá. O crash vai mostrar
que os EUA também não fizeram o "dever de casa", como
nos acusam.
O crash mostra a espantosa
ignorância dos americanos sobre os outros países. O crash vai
obrigar à criação de um "neo-
keynesianismo transnacional",
como disse o Kurz, que é um gênio. O Soros vai chorar, Greespan estará falando em justiça
social, japoneses vão restaurar
a grandeza perdida por Mishima.
O crash vai trazer os hippies
de volta, as drogas lisérgicas, o
artesanato de couro. O crash é
bom porque vai reviver a poesia, a arte, mortas pelo mercado. O crash é uma renascença.
Haverá uma estética do crash.
O crash vai entrar na moda,
roupas recicladas, maior inventividade, sem luxo. Vai ressurgir a arte povera. No crash teremos mais tempo para ler.
O crash vai criar escolas filosóficas: o pirronismo absoluto,
a escatologia escatológica: "a
merda está no fim da história"
(uma espécie de Hegel de costas) e um neoniilismo pragmático. O neomarxismo será "in",
e o neogetulismo também. Haverá bares de intelectuais fumando na madrugada, cheios
de esperançoso pessimismo.
Os filmes americanos ficarão
felizes e musicais como no tempo do crash de 29. Fred Astaire
vai dançar com Ginger Rogers
de novo. O crash acaba com os
filmes de grande produção.
O crash vai acabar com os
"Titanics". Graças a Deus. O
crash vai nos livrar dos grandes
shows de rock, das grandes bandas revoltadas, vai nos livrar
dos "world trade centers", dos
best sellers, das supercervejarias, dos canecões, da publicidade cara com homens escalando geleiras e voando no Himalaia. O crash acabará com a
dança do tchan. Será a dança
do crash.
Com a nova Guerra Fria entre
russos e americanos, indianos e
paquistaneses, Oriente e Ocidente usando "antrax" contra
"tomahawks", teremos a restauração da beleza da morte e
não mais sua banalização pelos
Van Dammes e Stallones.
O crash vai trazer um novo
sabor de verdade a esta ópera
bufa que vivemos. Acaba o pastelão e começa a tragédia real.
O crash vai acabar com este tédio administrativo e mercadológico. O crash será um "thrill"
para nossas vidas. A paz é chata, parece filme iraniano. A
guerra é que é legal, como filme
de ação.
O crash vai também revitalizar o inútil, a importância do
nada, da ausência de urgências,
uma saudável tristeza vil. O
crash vai acabar com a folga arrogante do capitalismo, com
sua idéia de progresso sem fim.
O progresso sem significado
faz da vida um acontecimento
sem significado. O crash vai
acabar com os programas espaciais e nos fazer voltar os olhos
para a Terra.
O crash vai nos dar o frisson
de sermos vítimas, a luz negra
excitante da paixão. O crash
vai acabar com este bom senso
insuportável que nos rege. Vai
restaurar novos anos 60. "Neo-
beatles" virão.
O crash vai acabar com os
emergentes, pois todos seremos
emergentes. Sem consumo, o
crash vai estimular o sexo... já
que não teremos nada a fazer.
O crash vai parir "babycrashers". E também vai justificar
brochadas: "Minha filha... desculpe... é o crash...". O crash vai
acabar com o grande movimento em aeroportos e diminuirá
sensivelmente o número de barrigudos falando alto em celulares. O crash fecha Miami.
O crash vai acabar com palavras como globalização, livre
mercado, competitividade, desregulamentação, qualidade total, neo-darwinismo. Como dizíamos, o mundo terá um
downsizing.
O crash vai restaurar o nacionalismo, o regionalismo, o
amor ao simples, ao possível, ao
carrinho de carretel, à pipa, ao
pião, em vez dos tamagochis. O
crash é retrô, delicioso -voltaremos aos anos 50, do qual
nunca saímos, na verdade.
O crash vai nos livrar da euforia e nos trazer a sadia tristeza,
vai nos tirar a ansiedade cansativa e nos dar finalmente a repousante depressão.
O crash vai ser bom para o
Brasil conhecer o caos. Há anos
que falamos nele sem saboreá-
lo, se bem que não temos competência nem para o caos (apud
Roberto Da Matta). Caos é
mais anglo-saxônico. Teremos
o pântano, o brejo (para onde a
vaca vai), coisa mais nossa,
mais "saudades do matão" com
sapos coaxando. O pântano é
mais Brasil.
O único problema do crash é
que ele vai revitalizar os fascismos. A Rússia vai ser fascio-comuna, chantageando o Ocidente com bombas, a China também. E isso, naturalmente, poderá causar uma guerra total,
em que morreremos todos, derretidos, adubando o solo para
novas espécies.
Mas, já que o espetáculo da
história humana foi este vexame milenar em busca de esperanças vãs, também isso é bom.
O crash é bom para acabar conosco, esta raça daninha que
atrapalhou o livre curso da natureza. Logo, não se preocupe.
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