São Paulo, terça, 8 de setembro de 1998

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Como parar de se preocupar e amar o crash

ARNALDO JABOR

da Equipe de Articulistas


² O crash é bom. Vai nos dar uma consciência mais humilde de nossos limites. Até que enfim, algo está acontecendo, depois de meses de suspense.
O crash traz uma nova era; terrível ou não, alguma verdade vem aí. Como chamá-la? A pós-pós-modernidade? O pós- apocalipse? A "desglobalização"? A única coisa que não será "pós" é a burguesia, claro. Não há "pós-burguesia".
O crash é bom para fracassados, pois estão desculpados. O crash é ruim para catastrofistas; que farão agora? O crash é bom para o contato com o absurdo. Nesse sentido o crash é filosófico. Beckett e Cioran serão livros de auto-ajuda.
Ficaremos mais espiritualizados com o crash. Num primeiro momento, o horror, bolsas caindo, grana sumindo. Depois, a paz do inevitável, a calma da desgraça assumida -vejam o rosto pacífico dos famintos do Sudão.
A fome traz uma paz desesperançada. O crash trará uma súbita revivência de faquires. O crash vai mostrar que a voracidade consumista não é a única maneira de viver. Vai nos fazer mais magros e mais frugais. Ficaremos mais elegantes com o crash. Crash chic.
O crash nos mostrará que há dois medos diversos: o medo "mano" e medo "playboy", medo "periférico" e medo "Jardins". O maior medo é dos investidores -pobre já está no crash há tempos, terá apenas que realocar sua falta de recursos. O crash é bom porque vai nos lembrar que não temos nada a perder, a não ser nossos liquidificadores.
O crash vai apagar um pouco o sorriso dos colunáveis sorrindo nas revistas. O crash vai fechar a "Caras". O crash vai provocar uma onda de suicídios de milionários diante dos olhos calmos dos miseráveis vingados. Com menos importação de BMWs, vai melhorar o trânsito de São Paulo. O crash vai instilar humildade nas almas yuppies. Vai acabar com suspensórios floridos e gravatas de pintinhas...
O crash vai acabar com os anúncios "globais" da IBM, unindo negros felizes na Nigéria com amarelos felizes na Mongólia e brancos felizes no Canadá. O crash vai mostrar que os EUA também não fizeram o "dever de casa", como nos acusam.
O crash mostra a espantosa ignorância dos americanos sobre os outros países. O crash vai obrigar à criação de um "neo- keynesianismo transnacional", como disse o Kurz, que é um gênio. O Soros vai chorar, Greespan estará falando em justiça social, japoneses vão restaurar a grandeza perdida por Mishima.
O crash vai trazer os hippies de volta, as drogas lisérgicas, o artesanato de couro. O crash é bom porque vai reviver a poesia, a arte, mortas pelo mercado. O crash é uma renascença. Haverá uma estética do crash.
O crash vai entrar na moda, roupas recicladas, maior inventividade, sem luxo. Vai ressurgir a arte povera. No crash teremos mais tempo para ler.
O crash vai criar escolas filosóficas: o pirronismo absoluto, a escatologia escatológica: "a merda está no fim da história" (uma espécie de Hegel de costas) e um neoniilismo pragmático. O neomarxismo será "in", e o neogetulismo também. Haverá bares de intelectuais fumando na madrugada, cheios de esperançoso pessimismo.
Os filmes americanos ficarão felizes e musicais como no tempo do crash de 29. Fred Astaire vai dançar com Ginger Rogers de novo. O crash acaba com os filmes de grande produção.
O crash vai acabar com os "Titanics". Graças a Deus. O crash vai nos livrar dos grandes shows de rock, das grandes bandas revoltadas, vai nos livrar dos "world trade centers", dos best sellers, das supercervejarias, dos canecões, da publicidade cara com homens escalando geleiras e voando no Himalaia. O crash acabará com a dança do tchan. Será a dança do crash.
Com a nova Guerra Fria entre russos e americanos, indianos e paquistaneses, Oriente e Ocidente usando "antrax" contra "tomahawks", teremos a restauração da beleza da morte e não mais sua banalização pelos Van Dammes e Stallones.
O crash vai trazer um novo sabor de verdade a esta ópera bufa que vivemos. Acaba o pastelão e começa a tragédia real. O crash vai acabar com este tédio administrativo e mercadológico. O crash será um "thrill" para nossas vidas. A paz é chata, parece filme iraniano. A guerra é que é legal, como filme de ação.
O crash vai também revitalizar o inútil, a importância do nada, da ausência de urgências, uma saudável tristeza vil. O crash vai acabar com a folga arrogante do capitalismo, com sua idéia de progresso sem fim.
O progresso sem significado faz da vida um acontecimento sem significado. O crash vai acabar com os programas espaciais e nos fazer voltar os olhos para a Terra.
O crash vai nos dar o frisson de sermos vítimas, a luz negra excitante da paixão. O crash vai acabar com este bom senso insuportável que nos rege. Vai restaurar novos anos 60. "Neo- beatles" virão.
O crash vai acabar com os emergentes, pois todos seremos emergentes. Sem consumo, o crash vai estimular o sexo... já que não teremos nada a fazer. O crash vai parir "babycrashers". E também vai justificar brochadas: "Minha filha... desculpe... é o crash...". O crash vai acabar com o grande movimento em aeroportos e diminuirá sensivelmente o número de barrigudos falando alto em celulares. O crash fecha Miami.
O crash vai acabar com palavras como globalização, livre mercado, competitividade, desregulamentação, qualidade total, neo-darwinismo. Como dizíamos, o mundo terá um downsizing.
O crash vai restaurar o nacionalismo, o regionalismo, o amor ao simples, ao possível, ao carrinho de carretel, à pipa, ao pião, em vez dos tamagochis. O crash é retrô, delicioso -voltaremos aos anos 50, do qual nunca saímos, na verdade.
O crash vai nos livrar da euforia e nos trazer a sadia tristeza, vai nos tirar a ansiedade cansativa e nos dar finalmente a repousante depressão.
O crash vai ser bom para o Brasil conhecer o caos. Há anos que falamos nele sem saboreá- lo, se bem que não temos competência nem para o caos (apud Roberto Da Matta). Caos é mais anglo-saxônico. Teremos o pântano, o brejo (para onde a vaca vai), coisa mais nossa, mais "saudades do matão" com sapos coaxando. O pântano é mais Brasil.
O único problema do crash é que ele vai revitalizar os fascismos. A Rússia vai ser fascio-comuna, chantageando o Ocidente com bombas, a China também. E isso, naturalmente, poderá causar uma guerra total, em que morreremos todos, derretidos, adubando o solo para novas espécies.
Mas, já que o espetáculo da história humana foi este vexame milenar em busca de esperanças vãs, também isso é bom. O crash é bom para acabar conosco, esta raça daninha que atrapalhou o livre curso da natureza. Logo, não se preocupe.



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