São Paulo, segunda-feira, 08 de novembro de 2010

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Diretor filma a sociedade ferida de um país sem sala de cinema

"Um Homem que Grita", de Mahamat-Saleh Haroun, marcou o retorno da África a Cannes

Longa que estreia no país em 19/11 conta a história de um nadador que perde o emprego na piscina de um hotel

Joel Silva/Folhapress
Mahamat-Saleh Haroun, diretor de "Um Homem que Grita", na av. Paulista, em São Paulo

ANA PAULA SOUSA
DE SÃO PAULO

No Chade não há nem mar nem cinema. Pois foi nesse canto do mundo que Mahamat-Saleh Haroun, que filmou a paixão de um homem pela água e ganhou o prêmio do júri no último Festival de Cannes, nasceu.
"Um Homem que Grita", que estreia no Brasil no próximo dia 19, marcou o retorno do cinema africano a Cannes após mais de uma década de ausência e fez de Haroun um herói.
Exilado em Paris, o cineasta, depois do prêmio, foi chamado pelo governo do Chade para uma conversa. O presidente do país criou um fundo público para financiar produções cinematográficas e quer que Haroun participe da criação de uma escola de cinema no Chade.
"Fui recebido como um chefe de Estado. Desfilei em carro aberto e tudo", diz. "Diziam que tínhamos ganho a Copa do Mundo do cinema. O prêmio tocou o país. Começaram a achar que, apesar de não termos quase nada, podíamos ter arte."
Em dezembro, "Um Homem que Grita" vai inaugurar a primeira sala de cinema do Chade. Elas existiram um dia. Mas, com o início da guerra civil, há quatro décadas, todas foram fechadas.
Haroun conta que, até hoje, seus filmes só puderam ser vistos em videoclubes. Ao notar certa surpresa no olhar da repórter, passa os dedos pela testa: "É esse meu país. Temos muito, muito pouco."

ROSTO DE MULHER
E o que faz alguém nascido no Chade escolher o cinema como ofício? "Ah, é uma história de amor. Me apaixonei em 1969", conta, como se falasse de uma mulher. Num cinema de Abéché, sua cidade natal, ele foi, com o tio, ver um filme de Bollywood.
O filme corria normalmente quando, de repente, uma atriz belíssima teve o rosto fechado em close e sorriu para a câmera. Haroun, então com apenas nove anos, teve a certeza de que ela havia sorrido para ele.
"A sensação foi tão marcante que ainda me lembro desse rosto", diz.
O sonho infantil ganhou forma quando, aos 15 anos, viu "Roma, Cidade Aberta", de Roberto Rossellini. "Pensei: Tenho que fazer a mesma coisa que ele." A essa altura, viu um anúncio de um curso de cinema em Paris. Recortou o endereço. Guardou bem guardado o papelzinho.
Aos 21, conseguiu ir para Paris e procurou o endereço. Lá estava o Conservatório de Cinema.

MARCAS DA GUERRA
Entre Rossellini e a "rue de Delta" houve, porém, o drama da guerra. Haroun, aos 19 anos, foi atingido por um tiro. Com o Chade em frangalhos, o pai teve de levá-lo para hospitais de Camarões e da Líbia.
E se Mahamat-Saleh Haroun escapou é porque nasceu numa família com condições de mover-se. Seu pai começou a vida como professor e tornou-se diplomata.
Mas marca de guerra é daquelas que ficam. E elas estão em Haroun e em suas imagens.
"Um Homem que Grita", seu quarto longa, conta a história de um campeão de natação que, após perder o emprego na piscina de um hotel, se sente aniquilado. Mas sua ideia é mostrar uma sociedade ferida. "Nos acostumamos à guerra, mas vamos sendo minados por ela."

ESPELHO
O cineasta tem mulher e filhos em Paris, mas todo o resto da sua família vive no Chade, onde ele sempre está - pelas raízes e pelo cinema.
"Só me interessa fazer filmes se for para mostrar minha gente. Quero que as pessoas se vejam num espelho, que se vejam transformadas em heróis, no sentido de ter a própria realidade contada", diz o cineasta.
Depois de terminar o curso de cinema em Paris, Haroun trabalhou como vigia e jornalista. Apenas em 1994 fez o primeiro curta-metragem, "Maral Tainé".
Exibido num cineclube no Chade, vendeu mais ingressos que "O Exterminador do Futuro". "Não tive dúvidas, a partir dali, de que, por mais que parecesse uma coisa maluca, tinha sentido o que eu estava fazendo."


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