São Paulo, sábado, 08 de dezembro de 2001

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Sem embargo, Fidel

Fotos reprodução do livro "Fidel Castro"
Acima, no sentido horário, Fidel aos dois anos; Fidel, Raúl e Ramón, em 1941; de terno, em 1942; e, jogando basquete, em 1943, em Havana



DA REPORTAGEM LOCAL

Preste atenção na sequência de fotos acima. Essas imagens imberbes de Fidel Castro nunca saíram de seus arquivos. Elas fazem parte do conjunto de 250 fotografias, boa parte delas inéditas, que estão distribuídas pelos dois tomos de "Fidel Castro - Uma Biografia Consentida", de Claudia Furiati.
Na primeira imagem à esquerda, o menino de dois anos era só o terceiro filho de Angel Castro, um dos maiores latifundiários cubanos, e de Lina, católica fervorosa que estimularia o garoto a fazer primeira comunhão. Na última, em 1943, já era o craque nos esportes Fidel, que ensaiava a liderança estudantil defendendo em debates o ensino privado e criticando a interferência do Estado nas áreas sociais.
Essas facetas até então invisíveis do dirigente cubano são algumas das "sete vidas" que estavam no título original do livro. Mas como em inglês os gatos têm "nove vidas", o título caiu do telhado.
"Biografia Consentida", termo ditado por Fidel, foi o caminho encontrado pela pesquisadora para evitar a idéia de biografia oficial. "Eu não queria uma biografia autorizada. O não-autorizada também não era preciso, pois tinha o consentimento de Fidel e, pela primeira vez, acesso a todo o arquivo dele", conta Furiati.
Ela entregou as provas do livro ao "comandante" no final de agosto deste ano, quando já estavam em fase de revisão. "Não sei até agora se ele leu. O texto estava em português."
O livro, por ora, não sai em Cuba. O acordo com a editora espanhola Plaza & Janés prevê a publicação em todo o mercado de língua hispana, com exceção da ilha.
"Estou colocando o Granma na água e não sei para onde ele vai", diz Furiati, fazendo metáfora entre seu livro e o nome do barco (abreviatura de avó, em inglês) com o qual Fidel saiu do seu exílio no México, em 1956, para começar as batalhas que terminariam com a conquista do poder, em janeiro de 1959.
O período mais detalhado dos dois volumes talvez seja esse. Dos 74 anos de Fidel, esses três levam 200 páginas de livro.
Antes de entrar no iate que deveria ter 25 passageiros, mas levou 82 revolucionários, o líder da tropa escreveu uma espécie de testamento, até então inédito.
"No automóvel que me conduz ao ponto de saída para Cuba, a cumprir um dever sagrado com a minha Pátria e o meu povo... quero deixar constância deste ato de última vontade para o caso de perecer na luta. Entrego meu filho aos cuidados do casal Alfonso Gutiérrez e Orquidia Pino", começa, se referindo ao até então único filho, Fidelito.
As fatias do livro dedicadas às batalhas na Sierra Maestra, região montanhosa no miolo da ilha a partir de onde Fidel coordenou a guerrilha contra o ditador Fulgêncio Batista, são especialmente vastas.
Furiati, que também atua como roteirista de cinema, transforma os combates em uma espécie de "Apocalypse Now". Um anexo com mais de dez páginas enumera dia e acontecimentos principais de cada uma das batalhas.
Toda a minúcia usada para decupar sequências como as da Sierra Maestra ou também para a chamada crise dos mísseis (o lendário entrevero que quase fez com que EUA e União Soviética detonassem a Terceira Guerra, em 1962) é dispensada para temas como as relações de Fidel com o Brasil ("o livro é internacional") e a vida pessoal do ditador ("não é preciso abrir muito a cortina para falar de uma pessoa").
Ditador, aliás, é termo que quase não sai das teclas do computador da pesquisadora, que adota o "comandante".
"Acho que o termo ditador está ligado a pessoas corruptas, como Franco, Salazar, Batista e dirigentes caribenhos. São trogloditas, agem à revelia dos interesses maiores da população. Fidel jamais trabalhou o poder colocando o interesse pessoal acima do desenvolvimento da nação e da emancipação cidadã. Se em alguns momentos ele foi ditatorial, foi em prol da maioria e do que ele via como destino da nação cubana", diz Furiati, que nunca foi militante política e não tem em casa nenhum pôster de Fidel ou de Che Guevara.
Che, por sinal, é outro assunto central da biografia, claro, contradizendo a maior parte das teorias existentes, de que houve uma briga estrondosa entre a dupla de revolucionários.
"Eles eram muito diferentes. Fidel era muito calculista, apesar de impetuoso. O Che não era assim. Ele não poderia ser um homem de Estado, conduzir o processo administrativo de uma nação. Era um revolucionário nato", sustenta a biógrafa.
"Num momento, quando Guevara se viu dentro de um quadro estatal, desempenhando um papel burocrático, dentro de uma revolução que tinha de se sedimentar e se institucionalizar, não mais ser feita, ele começou a se desencompatibilizar com esse papel", afirma.
Além disso, a pesquisadora sublinha a existência de um setor no próprio governo cubano muito mais aliado aos interesses da União Soviética e que via como desimportante justamente o objetivo do argentino Guevara, a exportação da revolução para toda a América Latina, a África e a Ásia.
"Isso tudo vai criando uma distância entre Che com relação ao Estado cubano. Fidel sempre tentou funcionar como um pêndulo, tentou segurar Che. Chegou um momento em que, por questão de respeito a esse personagem com o qual ele tinha uma história tão densa e profunda, ele deixou Che seguir o projeto dele."
Desvinculado de Cuba, Guevara sai para fazer a revolução "tricontinental" e morre nas matas da Bolívia, em 1967.
Com a morte dele, os impulsos de expansão revolucionária ainda existentes em Cuba sofrem retração. Esse retraimento, segundo Furiati, teria esfriado a relação frutífera que Fidel começava a desenvolver com o revolucionário brasileiro Carlos Marighela, que seria morto em 1969.
Segundo ela, foi do líder da Ação Libertadora Nacional que Fidel mais se aproximou. Mais do que de Francisco Julião, Leonel Brizola ou Luiz Carlos Prestes, outras lideranças de esquerda com as quais Fidel teve contato. Ou ainda do que Jânio Quadros, que visita Cuba como candidato de oposição para a eleição de 1960.
"Em um tête-à-tête, Fidel contou a Jânio Quadros o caso da sua renúncia como primeiro-ministro. Jânio ficou tão impressionado que, mais de um ano depois, ao abandonar o cargo de presidente (...), abrigava a inconfessa esperança de que o povo aclamasse pela sua volta, tal como ocorrera com o líder cubano", escreve Furiati, partindo de documentos encontrados no arquivo de Fidel.
Para Furiati, essas histórias são mais discutidas publicamente. Entre os orgulhos dela estão outros debates, como o do modo como se construiu a relação entre a Revolução Cubana e os Estados Unidos ("no início, por exemplo, Fidel tenta manter vínculos econômicos com eles") ou como Fidel lidou com a União Soviética ("houve um momento, por exemplo, que Fidel ficou chateado com a posição que os russos tomaram na crise dos mísseis").
Só resta ler os dois tomos e fazer o próprio julgamento se o autor da frase "A história me absolverá" será absolvido pela história.
A pesquisadora acredita que sim. "Fidel é de uma estatura de tal porte que já faz parte da história. Mais do que isso. Foi um dos principais condutores da história contemporânea."
(CASSIANO ELEK MACHADO)


FIDEL CASTRO - UMA BIOGRAFIA CONSENTIDA - Autora: Claudia Furiati. Editora: Revan (tel. 0/xx/21/2502-7495). Quanto: "Do Menino ao Guerrilheiro -tomo 1" (R$ 54, 576 págs.) e "Do Subversivo ao Estadista - tomo 2" (R$ 46, 496 págs.)


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