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LIVROS/LANÇAMENTOS
"MADAME BOVARY"
Romance traz os autos do processo sofrido por Flaubert
Nova edição do clássico
vem com guia de releitura
BIA ABRAMO
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Na introdução do magnífico
"Por Que Ler os Clássicos", Italo
Calvino tenta definir os movimentos que nos fazem (ou nos
impedem de) enfrentar ou revisitar as "grandes obras". Calvino
diz que "usar o verbo ler ou reler
não tem muita importância", e
propõe:
"4. Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira. 5. Toda primeira
leitura de um clássico é na realidade uma releitura. A definição 4
pode ser considerada corolário
desta: 6. Um clássico é um livro
que nunca terminou de dizer
aquilo que tinha a dizer. Ao passo
que a definição 5 remete para
uma formulação mais explicativa,
como: 7. Os clássicos são aqueles
livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras
que precederam a nossa e atrás de
si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na
linguagem ou nos costumes)".
É oportuno relembrar de suas
ponderações diante do relançamento de "Madame Bovary". Numa era em que não se hesita chamar de "clássico" qualquer coisa
com mais de cinco anos e na categoria de "coisa" vale tudo, do que
se chamava outrora com uma certa pompa de obra de arte ao que é
definido, desta vez, com ar de desprezo de "produtos" da indústria
cultural, não custa relembrar que
"Madame Bovary" é, sim, um
clássico, nos sentidos postulados
por Calvino e, além disso, um romance-marco e prenunciador da
literatura moderna.
Não é só por isso que é recomendável reencontrar-se (ou
mesmo encontrar-se) com a história dos nada extraordinários
amores de Emma Bovary e com o
esforço cerrado de Flaubert em
descrever a pequenez dos "costumes de Província" do subtítulo
com a grandeza de um estilo que
almejava tão potente que sustentaria "um livro sobre nada, um livro sem nada que o ligue ao mundo exterior, que se mantenha por
si mesmo pela força de seu estilo".
Talvez "Madame Bovary" seja
um dos livros que melhor justifique a simplicidade (talvez quase
ingenuidade) da proposição final
do ensaio de Calvino: "A única razão que se pode apresentar é que
ler os clássicos é melhor do que
não ler os clássicos".
"Madame Bovary" é um daqueles livros com a propriedade algo
incômoda de parecer menos do
que é, ao mesmo tempo em que
sugere repetidamente que estamos enganados sobre a transparência do que estamos lendo. Nesse sentido, esta nova edição da
Nova Alexandria oferece um guia
extraordinário para uma releitura, que é a transcrição dos autos
do processo por ofensa à moral
pública e religiosa que Flaubert
sofreu em 1856, justamente no intervalo entre a publicação seriada
na "Revue de Paris" e em livro.
Por exemplo, o sr. Ernest Pinard, advogado imperial e autor
da acusação, revela-se um leitor
indignado mas atentíssimo do romance de Flaubert. Depois de resumi-lo cena por cena para o juiz
e perorar sobre as "quatro cenas"
que constituem o que considera
os mais ultrajantes ataques à moralidade, ele conclui: "O gênero
que o sr. Flaubert cultiva e que
realiza sem os cuidados da arte,
mas com todos os recursos da arte, é o gênero descritivo, a pintura
realista. (...) Ele gosta de pintar
tentações, sobretudo as tentações
às quais sucumbiu a sra. Bovary".
O processo, que procurava impedir a publicação em livro e acabou por absolver escritor e editores, torna-se uma espécie de debate literário, em que o impacto
do estilo é discutido em detalhes.
O escândalo do adultério faz
pouco ou nenhum sentido hoje,
mas reler Flaubert à luz das observação argutas de seus contemporâneos sobre os achados de sua
escrita (o advogado de defesa chega a falar em "fidelidade totalmente daguerreana") confirma a
suposição de número 6 de Calvino: "Madame Bovary" ainda não
terminou o que tinha para dizer.
Madame Bovary
Madame Bovary
Autor: Gustave Flaubert
Tradução, apresentação e notas:
Fúlvia M. L. Moretto
Editora: Nova Alexandria
Quanto: R$ 38 (431 págs.)
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