São Paulo, sábado, 08 de dezembro de 2001

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LIVROS/LANÇAMENTOS

"MADAME BOVARY"

Romance traz os autos do processo sofrido por Flaubert

Nova edição do clássico vem com guia de releitura

BIA ABRAMO
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Na introdução do magnífico "Por Que Ler os Clássicos", Italo Calvino tenta definir os movimentos que nos fazem (ou nos impedem de) enfrentar ou revisitar as "grandes obras". Calvino diz que "usar o verbo ler ou reler não tem muita importância", e propõe:
"4. Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira. 5. Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura. A definição 4 pode ser considerada corolário desta: 6. Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha a dizer. Ao passo que a definição 5 remete para uma formulação mais explicativa, como: 7. Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes)".
É oportuno relembrar de suas ponderações diante do relançamento de "Madame Bovary". Numa era em que não se hesita chamar de "clássico" qualquer coisa com mais de cinco anos e na categoria de "coisa" vale tudo, do que se chamava outrora com uma certa pompa de obra de arte ao que é definido, desta vez, com ar de desprezo de "produtos" da indústria cultural, não custa relembrar que "Madame Bovary" é, sim, um clássico, nos sentidos postulados por Calvino e, além disso, um romance-marco e prenunciador da literatura moderna.
Não é só por isso que é recomendável reencontrar-se (ou mesmo encontrar-se) com a história dos nada extraordinários amores de Emma Bovary e com o esforço cerrado de Flaubert em descrever a pequenez dos "costumes de Província" do subtítulo com a grandeza de um estilo que almejava tão potente que sustentaria "um livro sobre nada, um livro sem nada que o ligue ao mundo exterior, que se mantenha por si mesmo pela força de seu estilo".
Talvez "Madame Bovary" seja um dos livros que melhor justifique a simplicidade (talvez quase ingenuidade) da proposição final do ensaio de Calvino: "A única razão que se pode apresentar é que ler os clássicos é melhor do que não ler os clássicos".
"Madame Bovary" é um daqueles livros com a propriedade algo incômoda de parecer menos do que é, ao mesmo tempo em que sugere repetidamente que estamos enganados sobre a transparência do que estamos lendo. Nesse sentido, esta nova edição da Nova Alexandria oferece um guia extraordinário para uma releitura, que é a transcrição dos autos do processo por ofensa à moral pública e religiosa que Flaubert sofreu em 1856, justamente no intervalo entre a publicação seriada na "Revue de Paris" e em livro.
Por exemplo, o sr. Ernest Pinard, advogado imperial e autor da acusação, revela-se um leitor indignado mas atentíssimo do romance de Flaubert. Depois de resumi-lo cena por cena para o juiz e perorar sobre as "quatro cenas" que constituem o que considera os mais ultrajantes ataques à moralidade, ele conclui: "O gênero que o sr. Flaubert cultiva e que realiza sem os cuidados da arte, mas com todos os recursos da arte, é o gênero descritivo, a pintura realista. (...) Ele gosta de pintar tentações, sobretudo as tentações às quais sucumbiu a sra. Bovary".
O processo, que procurava impedir a publicação em livro e acabou por absolver escritor e editores, torna-se uma espécie de debate literário, em que o impacto do estilo é discutido em detalhes.
O escândalo do adultério faz pouco ou nenhum sentido hoje, mas reler Flaubert à luz das observação argutas de seus contemporâneos sobre os achados de sua escrita (o advogado de defesa chega a falar em "fidelidade totalmente daguerreana") confirma a suposição de número 6 de Calvino: "Madame Bovary" ainda não terminou o que tinha para dizer.


Madame Bovary
Madame Bovary
    
Autor: Gustave Flaubert
Tradução, apresentação e notas: Fúlvia M. L. Moretto
Editora: Nova Alexandria
Quanto: R$ 38 (431 págs.)



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