São Paulo, sábado, 08 de dezembro de 2001

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WALTER SALLES

Biografia projeta luz e sombra sobre Cassavetes

Três novos livros sobre John Cassavetes, o mais influente cineasta independente americano da segunda metade do século passado, acabam de ser publicados. "Lifeworks", de Tom Charity, crítico da revista inglesa "Time Out", revisita a obra do autor de "Sombras", "Faces", "Uma Mulher sob Influência", "Noite de Estréia" e "Amantes", entre outros filmes fundamentais. Ainda na Inglaterra, o British Film Institute lançou um texto exclusivamente sobre "Sombras". E Ray Carney, professor de cinema na Universidade de Boston, conseguiu finalmente publicar a biografia "Cassavetes on Cassavetes", depois de dez anos de pesquisa. É não somente o mais importante dos três livros mas também uma aula sobre a história do cinema independente.
São mais de 500 páginas de informações colhidas com os atores que colaboraram com Cassavetes, como sua mulher Gena Rowlands, Peter Falk e Ben Gazzara. Metade do livro é composta de entrevistas dadas por Cassavetes a Carney, que este recontextualiza ou, muitas vezes, faz questão de contradizer. O resultado, fascinante, não é um retrato gentil e adulador de Cassavetes. Ao contrário, a personalidade que Carney revela é contraditória, complexa e imperfeita -à imagem dos personagens de seus filmes.
Cassavetes era um poço de contradições, diz Carney. "Voluntarioso e sensível. Autocentrado e generoso. Compreendia as fraquezas humanas de seus personagens porque aceitava as suas próprias imperfeições. Não os julgava, era solidário a eles, o que o distancia da forma condescendente com que Altman ou os irmãos Coen tratam as limitações dos personagens de seus filmes."
Filho de imigrantes gregos, Cassavetes sempre foi um "outsider". Entrou para a Academia Americana de Artes Dramáticas aos 19 anos. Penou. Durante cinco anos só conseguiu pequenos papéis no teatro ou na TV.
Não simpatizava com o método imposto pelo Actor's Studio, onde Brando e James Dean haviam se formado. Achava aquela forma de atuação "narcísica e autopiedosa" e dizia que o método havia se tornado tão enrijecido e pouco imaginativo quanto os estilos que ele havia subvertido na década de 40. Chocou-se desde cedo com tudo o que era considerado inquestionável no meio teatral ou cinematográfico norte-americano.
Começou a se interessar pelas peças off-Broadway. Logo se perguntou: se existe teatro fora dos padrões estabelecidos, por que não realizar cinema nos mesmos moldes? Cassavetes começou a idealizar "Sombras" antes de ver os filmes da nouvelle vague francesa e sempre refutou comparações a Godard ou aos primeiros filmes de Bergman. "Não sou um intelectual, eles sim", dizia.
"Cassavetes on Cassavetes" traz, mais do que tudo, revelações inesperadas sobre a maneira com que os seus filmes foram realizados. Revisto hoje, "Sombras" tem a aparência de um filme extraordinariamente moderno, vigoroso, improvisado. Carney nos mostra o quanto essa impressão é enganosa.
Em vez de ser uma filmagem rápida, "Sombras" demorou, num primeiro momento, mais de dez semanas para ser realizado. Os apartamentos do filme foram reconstruídos em estúdio. O texto foi sendo escrito e reescrito, e as improvisações eram mais restritas do que se poderia imaginar -ou do que John Cassavetes afirmava.
Também na contramão do que se espera de uma produção independente, Cassavetes chegava a refilmar 50 vezes a mesma cena. Para se ter uma idéia, um diretor como Kieslowski, acostumado à carência de material do Leste Europeu, filmava numa razão de dois para um, enquanto Cassavetes trabalhava em média com 30 tomadas para cada uma que acabava na montagem final.
Em outras áreas, o método desenvolvido por Cassavetes é realmente uma fonte de inspiração para qualquer filme independente. A equipe de filmagem raramente excedia cinco ou seis pessoas. Luz e som estavam sempre a serviço dos atores. E todos trabalhavam por amor ao filme, sem receber salários. Muitos se formaram na escola de Cassavetes -entre eles, um jovem assistente de produção de "Faces" chamado... Steven Spielberg.
A estréia de "Sombras" em Nova York, em novembro de 58, foi um fracasso. O som era inaudível, e o filme, longo demais. Mais da metade do público de cem pessoas saiu antes do fim. Cassavetes refilmou 75% do material. "Me enamorei pelo experimentalismo e me esqueci dos personagens", diria depois.
O que há de verdadeiramente extraordinário, na segunda versão de "Sombras" (a versão final), é uma descoberta que acabaria irrigando toda a obra de Cassavetes. Ao contrário da maioria dos filmes hollywoodianos, Cassavetes não impele uma unidade de tom na atuação dos personagens: cada ator é incentivado a defender o ponto de vista de seu personagem. "A unidade de tom destrói a humanidade de um texto", dizia. Cassavetes dava indicações contraditórias a cada um dos personagens, sem que o outro percebesse. O resultado é uma colisão de pontos de vista, uma heterogeneidade e uma visceralidade que espelham a própria dinâmica da vida.
"Sombras" é um reflexo das incertezas da juventude, que também mergulha no "malaise" racial norte-americano. "Faces" e "Maridos" tratam dos conflitos da maturidade. Em todos os seus filmes, Cassavetes continuou lutando pela divergência de pontos de vista. O problema, para ele, nunca foi "o outro", e sempre "nós". Carney explica que, por essa razão, a sua forma de expressão artística sempre foi um ato de empatia. Em vez de ficar de fora e julgar, Cassavetes optou por ver de dentro e tentar entender as nossas falhas.
Poeta da imperfeição e da convivência dos contrários, Cassavetes nos deixa um legado único e generoso: um cinema livre dos ideais de virtude, pureza ou heroísmo. Há muito o que aprender com ele.



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