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WALTER SALLES
Biografia projeta luz e sombra sobre Cassavetes
Três novos livros sobre
John Cassavetes, o mais influente cineasta independente
americano da segunda metade do
século passado, acabam de ser
publicados. "Lifeworks", de Tom
Charity, crítico da revista inglesa
"Time Out", revisita a obra do
autor de "Sombras", "Faces",
"Uma Mulher sob Influência",
"Noite de Estréia" e "Amantes",
entre outros filmes fundamentais.
Ainda na Inglaterra, o British
Film Institute lançou um texto
exclusivamente sobre "Sombras".
E Ray Carney, professor de cinema na Universidade de Boston,
conseguiu finalmente publicar a
biografia "Cassavetes on Cassavetes", depois de dez anos de pesquisa. É não somente o mais importante dos três livros mas também uma aula sobre a história do
cinema independente.
São mais de 500 páginas de informações colhidas com os atores
que colaboraram com Cassavetes,
como sua mulher Gena Rowlands, Peter Falk e Ben Gazzara.
Metade do livro é composta de
entrevistas dadas por Cassavetes
a Carney, que este recontextualiza ou, muitas vezes, faz questão
de contradizer. O resultado, fascinante, não é um retrato gentil e
adulador de Cassavetes. Ao contrário, a personalidade que Carney revela é contraditória, complexa e imperfeita -à imagem
dos personagens de seus filmes.
Cassavetes era um poço de contradições, diz Carney. "Voluntarioso e sensível. Autocentrado e
generoso. Compreendia as fraquezas humanas de seus personagens porque aceitava as suas próprias imperfeições. Não os julgava, era solidário a eles, o que o
distancia da forma condescendente com que Altman ou os irmãos Coen tratam as limitações
dos personagens de seus filmes."
Filho de imigrantes gregos, Cassavetes sempre foi um "outsider".
Entrou para a Academia Americana de Artes Dramáticas aos 19
anos. Penou. Durante cinco anos
só conseguiu pequenos papéis no
teatro ou na TV.
Não simpatizava com o método
imposto pelo Actor's Studio, onde
Brando e James Dean haviam se
formado. Achava aquela forma
de atuação "narcísica e autopiedosa" e dizia que o método havia
se tornado tão enrijecido e pouco
imaginativo quanto os estilos que
ele havia subvertido na década de
40. Chocou-se desde cedo com tudo o que era considerado inquestionável no meio teatral ou cinematográfico norte-americano.
Começou a se interessar pelas
peças off-Broadway. Logo se perguntou: se existe teatro fora dos
padrões estabelecidos, por que
não realizar cinema nos mesmos
moldes? Cassavetes começou a
idealizar "Sombras" antes de ver
os filmes da nouvelle vague francesa e sempre refutou comparações a Godard ou aos primeiros
filmes de Bergman. "Não sou um
intelectual, eles sim", dizia.
"Cassavetes on Cassavetes"
traz, mais do que tudo, revelações
inesperadas sobre a maneira com
que os seus filmes foram realizados. Revisto hoje, "Sombras" tem
a aparência de um filme extraordinariamente moderno, vigoroso,
improvisado. Carney nos mostra
o quanto essa impressão é enganosa.
Em vez de ser uma filmagem rápida, "Sombras" demorou, num
primeiro momento, mais de dez
semanas para ser realizado. Os
apartamentos do filme foram reconstruídos em estúdio. O texto
foi sendo escrito e reescrito, e as
improvisações eram mais restritas do que se poderia imaginar
-ou do que John Cassavetes afirmava.
Também na contramão do que
se espera de uma produção independente, Cassavetes chegava a
refilmar 50 vezes a mesma cena.
Para se ter uma idéia, um diretor
como Kieslowski, acostumado à
carência de material do Leste Europeu, filmava numa razão de
dois para um, enquanto Cassavetes trabalhava em média com 30
tomadas para cada uma que acabava na montagem final.
Em outras áreas, o método desenvolvido por Cassavetes é realmente uma fonte de inspiração
para qualquer filme independente. A equipe de filmagem raramente excedia cinco ou seis pessoas. Luz e som estavam sempre a
serviço dos atores. E todos trabalhavam por amor ao filme, sem
receber salários. Muitos se formaram na escola de Cassavetes
-entre eles, um jovem assistente
de produção de "Faces" chamado... Steven Spielberg.
A estréia de "Sombras" em Nova York, em novembro de 58, foi
um fracasso. O som era inaudível,
e o filme, longo demais. Mais da
metade do público de cem pessoas
saiu antes do fim. Cassavetes refilmou 75% do material. "Me
enamorei pelo experimentalismo
e me esqueci dos personagens",
diria depois.
O que há de verdadeiramente
extraordinário, na segunda versão de "Sombras" (a versão final),
é uma descoberta que acabaria
irrigando toda a obra de Cassavetes. Ao contrário da maioria dos
filmes hollywoodianos, Cassavetes não impele uma unidade de
tom na atuação dos personagens:
cada ator é incentivado a defender o ponto de vista de seu personagem. "A unidade de tom destrói a humanidade de um texto",
dizia. Cassavetes dava indicações
contraditórias a cada um dos personagens, sem que o outro percebesse. O resultado é uma colisão
de pontos de vista, uma heterogeneidade e uma visceralidade que
espelham a própria dinâmica da
vida.
"Sombras" é um reflexo das incertezas da juventude, que também mergulha no "malaise" racial norte-americano. "Faces" e
"Maridos" tratam dos conflitos
da maturidade. Em todos os seus
filmes, Cassavetes continuou lutando pela divergência de pontos
de vista. O problema, para ele,
nunca foi "o outro", e sempre
"nós". Carney explica que, por essa razão, a sua forma de expressão artística sempre foi um ato de
empatia. Em vez de ficar de fora e
julgar, Cassavetes optou por ver
de dentro e tentar entender as
nossas falhas.
Poeta da imperfeição e da convivência dos contrários, Cassavetes nos deixa um legado único e
generoso: um cinema livre dos
ideais de virtude, pureza ou heroísmo. Há muito o que aprender
com ele.
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