São Paulo, sábado, 08 de dezembro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ERUDITO

Delícias eróticas da Osesp

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Eis o que aconteceu em 1903: Richard Strauss compôs a "Sinfonia Doméstica". Eis o que aconteceu em 1934: estréia da "Rapsódia Sobre um Tema de Paganini" de Sergei Rachmaninov, em Baltimore. O resto é detalhe, o resto ninguém lembra, desapareceu da memória do mundo. A música fica. E soou viva mais uma vez no concerto da Osesp quinta-feira, regida por John Neschling.
Antes de Strauss, Rachmaninov; e antes de Rachmaninov, Bloch: Ernest Bloch (1880-1959), pequeno astro na pequena galáxia da música suíça. Seu "Schelomo", para violoncelo e orquestra, porta o subtítulo "rapsódia hebraica".
É o "schmalz" bíblico, um melado místico com salomônicas notas dó. Roman Mekilunov, "spalla" do naipe na orquestra, tirou toda a música que há para tirar da partitura, e provou que merece tocar algo melhor da próxima vez.
Depois da rapsódia sobre a segunda aumentada, a rapsódia sobre um tema de Paganini. Alguém explica o que quer dizer a combinação do tema do "Capricho 24" de Paganini com o "Dies Irae" gregoriano? Um é a imagem espelhada do outro. Mas por que a sugestão apocalíptica? Teologia à parte, Rachmaninov é o "schmalz" que dá certo. E o pianista Stephen Hough tocou a "Rapsódia" com energia, com alegria, com nostalgia. Milhares de semicolcheias impecavelmente em ordem. Dezenas de acordes impecavelmente em desordem. (E um bis raro e bonito, depois, do espanhol Mompou.)
Trompas da Osesp arrasando.
Ótimos solos (e conjuntos também) dos sopros no Strauss. O normalmente expansivo Nesch- ling estava anormalmente expansivo, e não é difícil de entender. Veja-se o roteiro da "Doméstica": cena da família, feliz em casa; o menino brincando; acalanto (lindo tema em terças dos clarinetes); idílio do casal; rusga, reconciliação, confiança, júbilo. Nem todo mundo concorda que seja essa uma das grandes obras do compositor; mas há grande Strauss de sobra, aqui e ali, e a cena do idílio é inesquecível. Até por motivos extramusicais.
Chegou a hora de dizer o que sempre se quis, e não podia. Porque esse grande adágio não é só romântico, à maneira, por exemplo, de Rachmaninov. Nem é só sugestivamente amoroso, à maneira, por exemplo, do "Bolero" de Ravel. É descritivamente, deliciosamente, minuciosamente erótico, com requintes de textura e andamento.
Strauss...é !*#!.
Tudo muda, é claro, nesse contexto. Um duo, um trio, uma batuta. Enfim: novas posições.
E a Osesp pode não ter sido a parceira mais transparente em todos os instantes (porque esse Strauss é mesmo !*#!); mas tocou com arroubo e fôlego -precisa mais?
O resto é detalhe, o resto ninguém lembra. São só as neuroses, que não podem nada contra o coração e a carne da música.


Osesp
    
Regência: John Neschling
Quando: hoje, às 16h30
Onde: sala São Paulo (pça. Júlio Prestes, s/nš; tel. 0/xx/3337-5414)
Quanto: de R$ 10 a R$ 30



Texto Anterior: Música: O "crítico" Elton Medeiros recebe prêmio
Próximo Texto: Walter Salles: Biografia projeta luz e sombra sobre Cassavetes
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.