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NELSON ASCHER
Uma torrada ao tradutor desconhecido
É fácil zombar de um tradutor que, se fosse bem pago
e dispusesse de bons dicionários,
após conferir o sentido de "dog
days" (canícula: os dias mais
quentes do verão), teria, quando
lidou com o filme "Dog Day Afternoon" (1975), abandonado a referência forçada ao melhor amigo
do homem e, em vez de chamá-lo
de "Um Dia de Cão", talvez o vertesse mais apropriadamente como "Uma Tarde de Calor".
E, malgrado ser cruel exigir de
alguém que soubesse que "Three
Dog Night" (uma banda americana formada em 68) quer dizer
"uma noite muito fria" (pois os
aborígenes australianos usavam
seus cachorros, os dingos, como
cobertor), não é demasiado esperar de um profissional que verifique se nos países anglófonos realmente se brinda "fazendo uma
torrada" ("making a toast") ou se
seus idosos retiram-se de fato
("retire") em vez de se aposentarem.
Quantos, porém, reconhecem os
achados preciosos de algum herói
anônimo? "Home Alone" (1990)
diz o necessário e, por causa da rima, soa agradável. Vertê-lo por
"Sozinho em Casa" tiraria toda a
graça que, todavia, "Esqueceram
de Mim" lhe restitui. Embora a
tradução esteja longe do literal,
quem a fez viu o filme e, partindo
dele, chegou a algo que funciona
tão bem quanto o original.
Outra tarefa corretamente
cumprida foi o título brasileiro de
"Ordinary People" (1980). Enquanto um profissional médio teria chegado, digamos, a "Pessoas
Comuns" (para nem falar de tradutores de poesia capazes de atrocidades como "Povo Ordinário"),
um anônimo competente descobriu a expressão coloquial que
corresponde ao sentido da inglesa: "Gente como a Gente".
Devido, provavelmente, a um
programa embutido milênios
atrás em nossa massa cinzenta,
uma das fontes inesgotáveis de
humor continua sendo a semelhança sonora entre palavras que
veiculam sentidos diferentes ou
contraditórios. Se bem que tais
paralelos, decorrendo no mais
das vezes do acaso, quase nunca
se repetem idênticos em línguas
diferentes, nem por isso jogos de
palavras constituem obstáculos
necessariamente intransponíveis.
Em "Fun with Dick and Jane"
(1977), aliás simpaticamente rebatizado de "Adivinhe Quem
Vem para Roubar", uma paródia
de "Adivinhe Quem Vem para
Jantar" ("Guess Who's Coming
for Dinner", 1967), um casal de alta classe média que perde a fonte
de renda acaba, para manter sua
posição social, recorrendo ao crime. Este logo começa a render
além do esperado e, quando no
coquetel que os protagonistas
promovem comemorando seu
reencontro com a fortuna alguém
lhes pergunta qual o ramo a que
se dedicam e o marido (George
Segall) lhe responde "steal" (roubar/assaltar), seu interlocutor comenta que o aço ("steel") é um
ótimo negócio.
Adequadamente, a versão brasileira também se vale de um trocadilho plausível: "assalto/asfalto". ("Rouba/roupa" teria, sem
prejuízo do humor, dado igualmente certo).
Cada qual dos exemplos acima,
por insignificante que pareça,
não deixa de ser a solução inteligente para um problema que, na
sua complexidade, encapsula a
essência da tradução literária, algo que consiste, primeiro, em formular claramente tal ou qual dificuldade e, depois, em procurar a
melhor solução possível.
Sem prescindir jamais da inspiração e de "insights", a atividade
em questão possui uma natureza
sobretudo racional. E é nesta que
se oculta uma razão, quem sabe a
principal, para que o estatuto
enobrecedor de arte lhe seja habitualmente negado.
Há mais de 200 anos, desde pelo
menos o romantismo e atravessando o simbolismo e o surrealismo antes de chegar à contracultura (que, se já não se manifesta tão
impositivamente, ainda preserva
certa hegemonia difusa), uma das
maneiras dominantes de apreciar
e entender as artes tem sido a que
lhes atribui o papel de contraponto ao racional ou de seu pólo
oposto, uma tentação particularmente sedutora perante uma audiência à qual a modernidade
não cessa de impor, no dia-a-dia,
exigências cada vez maiores de
racionalidade.
Segundo tal visão, as artes seriam produto não tanto da sensibilidade cultivada e exercitada
ou do pensamento exigente e meticuloso como, oscilando ao sabor
de terminologias e jargões diversos, seja da alma e do espírito, seja
do inconsciente privado ou coletivo, quando não de potências divinas ou demoníacas. Em todo caso, os ditames da racionalidade
cotidiana não se aplicariam a
elas.
Entre os que partilham dessas
concepções, a tradução, devido a
seu necessário pragmatismo e sofrendo, em consequência, de um
excesso de cerebralidade associado a um déficit de espiritualidade, fica obrigatoriamente confinada a um degrau hierárquico
inferior: na melhor das hipóteses,
o de ofício. Agravando a situação,
ela é, no que tem de melhor, uma
resposta a algo que, para poder
ser solucionado, teve de ser formulado enquanto um problema.
Acontece que aquilo que o tradutor aborda já surgira como solução de algum problema prévio.
O pressuposto da traduzibilidade
é o de que o autor também buscou
resolver questões passíveis de serem formuladas, por exemplo: como fazer uma canção de amor
sem cair na pieguice ou um poema político que não soe demagógico? A qualidade de uma obra,
para quem a veja assim, mantém
uma relação direta, por um lado,
com a pertinência das questões
que lhe dão origem e, por outro,
com a inteligência das respostas
elaboradas pelo autor.
Se quiser responder ao que era
anteriormente uma resposta, o
tradutor precisa reformulá-la enquanto indagação, refazendo inversamente o caminho percorrido
por quem escreveu o original, de
modo a descobrir qual era sua
pergunta.
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