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São Paulo, segunda-feira, 08 de dezembro de 2003

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NELSON ASCHER

Uma torrada ao tradutor desconhecido

É fácil zombar de um tradutor que, se fosse bem pago e dispusesse de bons dicionários, após conferir o sentido de "dog days" (canícula: os dias mais quentes do verão), teria, quando lidou com o filme "Dog Day Afternoon" (1975), abandonado a referência forçada ao melhor amigo do homem e, em vez de chamá-lo de "Um Dia de Cão", talvez o vertesse mais apropriadamente como "Uma Tarde de Calor".
E, malgrado ser cruel exigir de alguém que soubesse que "Three Dog Night" (uma banda americana formada em 68) quer dizer "uma noite muito fria" (pois os aborígenes australianos usavam seus cachorros, os dingos, como cobertor), não é demasiado esperar de um profissional que verifique se nos países anglófonos realmente se brinda "fazendo uma torrada" ("making a toast") ou se seus idosos retiram-se de fato ("retire") em vez de se aposentarem.
Quantos, porém, reconhecem os achados preciosos de algum herói anônimo? "Home Alone" (1990) diz o necessário e, por causa da rima, soa agradável. Vertê-lo por "Sozinho em Casa" tiraria toda a graça que, todavia, "Esqueceram de Mim" lhe restitui. Embora a tradução esteja longe do literal, quem a fez viu o filme e, partindo dele, chegou a algo que funciona tão bem quanto o original.
Outra tarefa corretamente cumprida foi o título brasileiro de "Ordinary People" (1980). Enquanto um profissional médio teria chegado, digamos, a "Pessoas Comuns" (para nem falar de tradutores de poesia capazes de atrocidades como "Povo Ordinário"), um anônimo competente descobriu a expressão coloquial que corresponde ao sentido da inglesa: "Gente como a Gente".
Devido, provavelmente, a um programa embutido milênios atrás em nossa massa cinzenta, uma das fontes inesgotáveis de humor continua sendo a semelhança sonora entre palavras que veiculam sentidos diferentes ou contraditórios. Se bem que tais paralelos, decorrendo no mais das vezes do acaso, quase nunca se repetem idênticos em línguas diferentes, nem por isso jogos de palavras constituem obstáculos necessariamente intransponíveis.
Em "Fun with Dick and Jane" (1977), aliás simpaticamente rebatizado de "Adivinhe Quem Vem para Roubar", uma paródia de "Adivinhe Quem Vem para Jantar" ("Guess Who's Coming for Dinner", 1967), um casal de alta classe média que perde a fonte de renda acaba, para manter sua posição social, recorrendo ao crime. Este logo começa a render além do esperado e, quando no coquetel que os protagonistas promovem comemorando seu reencontro com a fortuna alguém lhes pergunta qual o ramo a que se dedicam e o marido (George Segall) lhe responde "steal" (roubar/assaltar), seu interlocutor comenta que o aço ("steel") é um ótimo negócio.
Adequadamente, a versão brasileira também se vale de um trocadilho plausível: "assalto/asfalto". ("Rouba/roupa" teria, sem prejuízo do humor, dado igualmente certo).
Cada qual dos exemplos acima, por insignificante que pareça, não deixa de ser a solução inteligente para um problema que, na sua complexidade, encapsula a essência da tradução literária, algo que consiste, primeiro, em formular claramente tal ou qual dificuldade e, depois, em procurar a melhor solução possível.
Sem prescindir jamais da inspiração e de "insights", a atividade em questão possui uma natureza sobretudo racional. E é nesta que se oculta uma razão, quem sabe a principal, para que o estatuto enobrecedor de arte lhe seja habitualmente negado.
Há mais de 200 anos, desde pelo menos o romantismo e atravessando o simbolismo e o surrealismo antes de chegar à contracultura (que, se já não se manifesta tão impositivamente, ainda preserva certa hegemonia difusa), uma das maneiras dominantes de apreciar e entender as artes tem sido a que lhes atribui o papel de contraponto ao racional ou de seu pólo oposto, uma tentação particularmente sedutora perante uma audiência à qual a modernidade não cessa de impor, no dia-a-dia, exigências cada vez maiores de racionalidade.
Segundo tal visão, as artes seriam produto não tanto da sensibilidade cultivada e exercitada ou do pensamento exigente e meticuloso como, oscilando ao sabor de terminologias e jargões diversos, seja da alma e do espírito, seja do inconsciente privado ou coletivo, quando não de potências divinas ou demoníacas. Em todo caso, os ditames da racionalidade cotidiana não se aplicariam a elas.
Entre os que partilham dessas concepções, a tradução, devido a seu necessário pragmatismo e sofrendo, em consequência, de um excesso de cerebralidade associado a um déficit de espiritualidade, fica obrigatoriamente confinada a um degrau hierárquico inferior: na melhor das hipóteses, o de ofício. Agravando a situação, ela é, no que tem de melhor, uma resposta a algo que, para poder ser solucionado, teve de ser formulado enquanto um problema.
Acontece que aquilo que o tradutor aborda já surgira como solução de algum problema prévio. O pressuposto da traduzibilidade é o de que o autor também buscou resolver questões passíveis de serem formuladas, por exemplo: como fazer uma canção de amor sem cair na pieguice ou um poema político que não soe demagógico? A qualidade de uma obra, para quem a veja assim, mantém uma relação direta, por um lado, com a pertinência das questões que lhe dão origem e, por outro, com a inteligência das respostas elaboradas pelo autor.
Se quiser responder ao que era anteriormente uma resposta, o tradutor precisa reformulá-la enquanto indagação, refazendo inversamente o caminho percorrido por quem escreveu o original, de modo a descobrir qual era sua pergunta.



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