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ARTIGO
Mário Bortolotto foi vítima de um tiro parado no ar
Baleado dentro do Espaço Parlapatões, na praça Roosevelt, no último sábado, dramaturgo passou de testemunha de seu tempo a vítima da realidade factual
MAURÍCIO PARONI DE CASTRO
ESPECIAL PARA A FOLHA
O diretor Fernando Peixoto
descreve a estrutura de "Um
Grito Parado no Ar", de Gianfrancesco Guarnieri, no teatro
Aliança Francesa, em 1973:
"Um diretor e cinco atores procuram realizar um trabalho,
enfrentando toda sorte de pressões externas; [...] noutro plano
estão os poucos momentos em
que o diretor e atores conseguem vencer; o espectador assiste ao processo de criação do
ator. A mística do teatro é desnudada. [...] No terceiro plano
estão as entrevistas com o povo, todas autênticas, gravadas
nas ruas de São Paulo. Na peça
dentro da peça seriam entrevistas realizadas para servirem de
material de estudo para a criação de suas personagens".
Trinta e oito (38!) anos depois, na mesma cidade onde a
população (rica e pobre) passou
a ter a mesma vida dos ratos,
dentro de carros com insulfilm,
de escritórios, nas fábricas, escrava de apartamentos cuidados por uma imensa população
de escravos chamados de empregados, há uma praça onde
passa a vigorar uma estranha proibição de ir e vir.
São os próprios moradores -que substituíram os travestis
e prostitutas de um tempo- a
chamar as autoridades, obrigadas a cumprir a lei -não importa se a lei vale ali e para os 99%
dos lugares periféricos onde há tiroteios e chacinas.
Um dramaturgo que tem um blog chamado "Atire no Dramaturgo", dentro de um dos
teatros da praça, reage a um assalto promovido por ladrões
drogados e certos da impunidade. É baleado, espera-se não mortalmente.
Não é Camus, não é Kafka, não é Buñuel, não é mais Guarnieri. O próprio dramaturgo
não pode contar a condição absurda dessas circunstâncias.
Porque de testemunha de seu tempo virou vítima da realidade factual.
Esse é o drama: nenhum de nós consegue contar a tragédia, porque não há público que possa entender tal lógica. Quem é o promotor dela?
Quem financia aquela bala?
Escola
Na praça emblemática do
drama com uma bala parada no
ar, vai se instalar uma escola de
teatro onde se ensinará o grito.
Não é uma escola qualquer; é dirigida aos que não podem estudar, aos únicos que entendem a lógica de contar histórias nas quais vivem. Gente que está fadada a viver como aquele assaltante que "atirou no dramaturgo".
Mas se revolta, indignada, a classe imbecil que ideologiza a
nossa cidade, os "libertários" que inventam e habitam apartamentos de muitos cômodos,
banheiros e três garagens em 60 m2. Aquela gentalha aparentemente decente tão bem criticada nos filmes e escritos do cineasta Pasolini. Exigem mais
escolas perto deles. Escolas inacessíveis a quem precisa de uma linguagem para poder se contar.
Italiano brasileiríssimo, o
autor de "Um Grito Parado no
Ar", Gianfrancesco Guarnieri,
declarou que "ter de modificar
a própria maneira de falar pode
ser bom, no sentido em que a
modificação traz a conquista de novos instrumentos".
Gianfrancesco vinha de um
país que, acabado o fascismo,
resolveu o problema de forma
direta: escolas boas para todos,
indiscriminadamente. Em
duas gerações, acabou a violência. Mas aqui fingimos pensar o
grande, o social e o econômico.
E se continua como antes, na deseducação e no falso sonho de liberdade.
Esse tiro parado no ar de que
o nosso Bortolotto infelizmente é protagonista precisa ser
extraído de nossas cidades. Se
tivermos, como classe, assumido a responsabilidade de artistas, indo além dos interesses
ideológicos, vamos dar condições "gramáticas" de resposta a
quem não tem. Isso quer dizer
fazer estudar quem realmente pode puxar um gatilho.
Resposta
Se quisermos dar uma resposta civilizada e de classe a esse absurdo, esta só poderá ser
histórica e de longo prazo; formar mais artistas e dramaturgos -os próprios protagonistas
daquela triste madrugada, os
que ensinarão, os que estudarão na praça- para contar o
que não se consegue contar agora.
Não se trata do lugar-comum
"a vida imita a arte", porque isso é material de literatura, de
teatro, de música e de arte.
Há meses venho dizendo que ali se trava uma batalha social,
política e humana. Há vozes de heroísmo e de demagogia.
Quem banca tal espetáculo, tal
escola, e por aí vai, como fofocas numa luta de miseráveis. Isso tem de mudar. Somente reflexão, inteligência e disciplina
poderão salvar tudo. E quando
escrevo "tudo" escrevo "centro". Neste momento somos
símbolo e centro de um drama
que pode modificar o seu final.
A nós agora cabe decifrar como contar e com qual gramática podemos lutar para que as
coisas melhorem. E isso é possível.
Por enquanto, envio força vital ao Bortolotto.
MAURÍCIO PARONI DE CASTRO é diretor de
teatro
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