São Paulo, domingo, 09 de janeiro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CINEMA

Para o israelense Syvan, que co-dirigiu "Rota 181" com o palestino Khleïf, filmes podem ir à raiz do conflito entre seus países

Cineastas filmam divisória imaginária

ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

A questão palestina chega ao documentário e repercute. Cineastas nascidos e/ou formados na região expressam seus pontos de vista sobre um conflito desigual e desumano em documentários que respeitam a profundidade das questões em jogo.
Em 1948, a ONU determinou a criação de Israel e estabeleceu uma linha que demarcava a fronteira entre o novo Estado judeu e o que deveria vir a ser o Estado palestino. Essa linha fronteiriça, que nunca saiu do papel, dá nome ao filme provocante, co-dirigido por Eyan Sivan, jovem israelense, e Michel Khleïf, veterano palestino, ambos radicados na França.
Os dois cineastas percorreram a divisória imaginária registrando a paisagem e entrevistando palestinos e israelenses que vivem no que um dia foi pensado como uma região fronteiriça.
"Rota 181" faz parte de uma safra de documentários recentes, que, para além de alinhamentos institucionais, nacionais ou religiosos, expressam o absurdo da situação de violência, desigualdade e enfrentamento a que se chegou na região. A colaboração entre um diretor israelense e um palestino permite que a equipe, ora em hebreu, ora em árabe, estabeleça relações de confiança de ambos os "lados".
O resultado gerou reações controvertidas. Acusado de anti-semitismo, "Rota 181" teve a sessão de lançamento, em Paris, cancelada. Mas exibido nos cinemas na França, em Israel, na Alemanha, Suíça, Itália e Espanha, o filme, originalmente captado em vídeo digital, está disponível em DVD com legendas em seis línguas. Eyan Sivan falou com a Folha por telefone de sua casa em Paris.
 

Folha - Como surgiu a idéia de fazer "Rota 181"?
Eyan Sivan -
Foi durante a invasão de Jenin na primavera de 2002. Era uma época muito violenta. Havia muita repressão e muitas bombas suicidas. Nesse período, conversamos, Michel e eu, sobre o que o cinema pode fazer em um momento como esse? Decidimos viajar para entender como chegamos às barreiras, às guerras, à barbárie, na própria geografia local. A idéia era também nos opor à "solução progressista", que é separação, para propor um outro caminho, que seria o de uma luta comum.

Folha - Como foi a experiência de co-dirigir com um palestino?
Sivan -
A experiência de co-direção é difícil e muito interessante. Com um palestino é ainda mais interessante porque nós aprendemos um com o outro, o que significa ser o outro. Não se trata aqui de defender um ou outro ponto de vista, mas de tentar construir juntos uma narrativa comum.

Folha - Além de "Rota 181", documentários como "Promessas" e "Muro" procuram maneiras alternativas para falar do conflito israelo-palestino, sem reproduzir preconceitos. Você diria que há um movimento nesse sentido?
Sivan -
Há a consciência de que somos responsáveis inclusive pela maneira como falamos do conflito. Acho que a missão é se opor à notícia. O documentário pode usar o tempo para ir cada vez mais fundo, até a raiz do conflito. Acho também que há uma grande diferença entre objetividade e neutralidade. Talvez a novidade nesses filmes seja que gente como Simone Bitton que fez "Muro" é engajada.

Folha - Ouvimos a voz de vocês, mas não sabemos quando é um e quando é o outro. Por que vocês não aparecem na tela?
Sivan -
Não somos atores, somos diretores. Aparecemos o suficiente pelas nossas vozes e por nossa edição, por nossa escolha de ângulo de filmagem, de pessoas a serem entrevistadas.

Folha - Você pensa no seu trabalho como ativismo?
Sivan -
Eu não sei o que significaria fazer cinema político sem ser um ativista político. Eu tenho tentado ser ativo tanto nas questões culturais quanto nas questões políticas. Considero que meu projeto cinematográfico -do meu primeiro filme sobre os refugiados palestinos, até meu último filme sobre a repressão na Alemanha Oriental- pode ser lido como ativismo.

Folha - Há uma guerra fragmentada que ocorre simultaneamente em diversas frentes. Até que ponto essa é também uma guerra de imagens?
Sivan -
Há um excesso de imagens. O que desejamos não é a multiplicação da imagem, mas a multiplicação de ângulos. Se você está do lado da vítima, ou do algoz, você não vê as mesmas coisas. Para ter uma idéia sobre a realidade, precisa-se dos dois lados.

Folha - Nesse sentido, a feitura do filme -em si mesma- é uma intervenção...
Sivan -
Exatamente. Fomos a todos os lugares, com uma equipe pequena, não nos impusemos frente às pessoas, lhes demos tempo e procuramos traduzir a experiência em 4,5 horas de filme.

Folha - Como você vê o plano de Ariel Sharon de retirar as tropas israelenses da faixa de Gaza?
Sivan -
O plano dele transforma Gaza em uma prisão. Todos os acessos, por terra, por mar ou pelo ar, estariam nas mãos dos israelenses. Se ele realmente levar o plano a cabo, estaria criando uma enorme prisão em espaço aberto. De outro lado a segunda parte da proposta dele é a anexação de novas partes. Então se você me perguntar se eu sou a favor do plano, eu sou contra.

Folha - Você esteve recentemente em Israel para o lançamento do filme, como foi a recepção?
Sivan -
O filme foi recebido com muito interesse, paciência e um grande debate. O momento lá é especialmente rico para reflexão. Há a sensação de que pequenos segredos históricos, como o de 1948, contribuem para o país estar na situação em que está hoje. Nesse momento de conscientização o filme gerou um debate fascinante. Será lançado em diversos cinemas. O DVD também está sendo vendido em Israel. Essa recepção tem sido muito importante.

Folha - Há planos de exibir "Rota 181" no Brasil?
Sivan -
Espero que como em outras partes do mundo, um distribuidor brasileiro se interesse pelo filme, para o cinema, no circuito educacional, e é claro na TV, pois o filme pode ser exibido em partes como foi em uma série de países. Eu adoraria que o filme fosse visto no Brasil.


Esther Hamburger é antropóloga e professora da ECA-USP


Texto Anterior: Programação: Catástrofes naturais reúnem fãs na TV
Próximo Texto: Diretora trata conflito a partir de visão pessoal
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.