São Paulo, sábado, 09 de janeiro de 2010

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O outono de Nabuco

Troca de cartas com o confidente Graça Aranha na última década de vida mostra angústias e traços da vida privada do pensador, cuja morte completa 100 anos no dia 17

Acervo da Fundação Joaquim Nabuco
Graça Aranha, Joaquim Nabuco e Magalhães de Azeredo (a partir da esq.) em Roma, em 1904

FABIO VICTOR
DA REPORTAGEM LOCAL

De certas figuras públicas às vezes se esquece que viveram a vida banal cotidiana e tiveram suas debilidades e sensações triviais. Joaquim Nabuco, o abolicionista, político e diplomata cuja morte completa cem anos no dia 17, é um desses personagens que, por imensos, parecem intangíveis. Mas os arquivos volta e meia lembram que foram gente e desvelam-lhes as facetas humanas.
As mais recentes de Nabuco surgem da correspondência trocada com o escritor e diplomata Graça Aranha, objeto de uma pesquisa de cinco anos de Anco Márcio Tenório Vieira, professor de pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco, em fase de finalização e que deve ser publicada em livro neste ano.
Vieira mergulhou nos acervos da Fundaj (Fundação Joaquim Nabuco), no Recife, e da ABL (Academia Brasileira de Letras), no Rio, onde repousa o acervo de Graça Aranha.
Revolveu 290 cartas entre os dois e trouxe à superfície traços do Nabuco diplomata, liderando no fim do século 19 a (derrotada) disputa com a Inglaterra por terras na Guiana, mas vieram junto detalhes valiosos da vida privada do personagem.
O período da troca epistolar vai de 1899 a 1910, os últimos anos de vida de Nabuco. O outono do pensador pernambucano foi intenso. Começou com a redenção como homem público -ao ser nomeado para chefiar na Europa a missão da Guiana, após o ostracismo que se seguiu à recusa em aderir à República-, terminou com as queixas à saúde frágil e com o fracasso, sendo ele embaixador em Washington, para impor seu pan-americanismo ao governo brasileiro -que permaneceu mais alinhado à Europa.
Ao lado dos seus diários, publicados em 2005 em parceria entre editora Bem-Te-Vi e Fundaj, as cartas de Nabuco (há trechos destas repetidos naqueles) são o suprassumo de sua vivência cotidiana, recentemente explorada com esmero na biografia de Angela Alonso publicada em 2007 pela Companhia das Letras.
O trabalho da equipe de Anco Vieira -que inclui as pesquisadoras Virgínia Celeste Carvalho da Silva, Suelen Orling Machado e Yara Gonçalves Manolaque- agrega elementos importantes a este outro Nabuco.
Nivelado ao patamar coloquial, pouco lembra o intelectual de feitos heroicos e reconhecimento internacional. Capaz de dar uma carteirada num porto americano e divertir-se depois ao relatar o episódio a Aranha, numa das cartas pinçadas por Anco Vieira para a Folha.
Ou de fofocar, desdenhando de monstros sagrados da inteligência nacional: em carta de 12 de setembro de 1903, conta ao amigo que não leu e não gostou de "Os Sertões", de Euclydes da Cunha. "É um imenso cipoal; a pena do escritor parece-me mesmo um cipó dos mais rijos e dos mais enroscados. (...) De certo talento há nele, e muito, mas o talento quando não é acompanhado da ordem necessária para o desenvolver e apresentar, há alguma coisa em mim que me faz fugir dele."
À medida que a doença se aproxima (teve arteriosclerose e policitemia), queixa-se. Em 21 de novembro de 1906 escreve: "(...) Também não posso ler, porque os olhos logo se congestionam, nem escrever, porque o braço cansa logo e a mão se nega a segurar a pena".
Em outra carta, publicada na última edição da revista "Continente", reclama da surdez. "Estou talvez condenado a refugiar-me nas recordações; lá se foram os ouvidos para a música, o espírito, a convivência, o que já aumentou muito o papel da "Memória" [memorial sobre a disputa pelos limites da Guiana] na elaboração da felicidade que me é precisa para viver, e breve não poderei mais permitir-me a distração das dez horas de trabalho por dia."
É certo que o maior militante brasileiro do fim da escravidão teve correspondências mais ilustres, como as com Machado de Assis e Rui Barbosa, ambas já publicadas. Mas poucas foram tão extensas e íntimas como a com Graça Aranha, que, aos 30 anos, foi secretário de Nabuco na missão da Guiana.
"Graça Aranha tornou-se seu confidente e braço direito durante todo o processo da Guiana Inglesa e o último grande amigo na sua última década de vida. Foi a ponte entre a Geração de 1870 e a que vai sucedê-la, os intelectuais dos anos 1920. Em relação à primeira, ele era o mascote de um grupo que estava na faixa dos 50 anos; quanto à segunda, estava na posição oposta, de sênior", explica Anco Vieira.

Ano Joaquim Nabuco
Uma lei aprovada no ano passado no Congresso institui 2010 como Ano Nacional Joaquim Nabuco. Fundaj e ABL preparam uma série de atividades para marcar os cem anos da morte do abolicionista, a partir da data (dia 17), quando haverá uma missa na igreja da Candelária, no Rio. No dia seguinte, a ABL faz uma sessão especial.


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