São Paulo, sábado, 9 de janeiro de 1999

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LIVRO LANÇAMENTOS
Cortázar transforma literatura em ação

BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha


São cada vez mais raros, ainda mais entre os jovens, os escritores capazes de refletir não sobre por que ou para que escrevem (em geral, para o mercado), mas sobre o que significa escrever.
Julio Cortázar escreveu a "Teoria do Túnel" em 1947, aos 33 anos, ao mesmo tempo que redigia os contos de seu primeiro livro, "Bestiário".
Hoje, o simples vislumbre do sucesso -e, se há faro comercial, de um retorno financeiro - substituiu boa parte dos outros valores -senão todos- que antes ainda podiam guiar a literatura. O jovem escritor não precisa mais refletir, ocupado que está em se promover.
"Teoria do Túnel" é o primeiro volume com que a editora Civilização Brasileira dá início à publicação da obra crítica do escritor argentino, com organização de Saúl Yurkievich. Sai ao mesmo tempo que a reedição do hilariante "Histórias de Cronópios e de Famas" (leia texto abaixo).
Sob o pretexto de fazer uma pequena história da literatura ocidental neste século, com ênfase na gênese do surrealismo e do existencialismo como as grandes correntes literárias que definem o momento em que escreve, Cortázar termina por expor a teoria da sua própria literatura -ali ainda em gestação, e cujo ápice será "O Jogo da Amarelinha" (1963), que poderá ser lido em diferentes ordens à sugestão do autor.
Embora muito característico de um determinado momento histórico (pela importância dada ao surrealismo e ao existencialismo), "Teoria do Túnel" representa ainda hoje uma das tentativas reflexivas ao mesmo tempo mais radicais, perspicazes e apaixonadas que um escritor pode empreender sobre o seu próprio trabalho.
Herdeiro em linha direta dos românticos, de Nietzsche e de Kierkegaard, o jovem Cortázar propõe uma literatura que não seja meramente formal ou estética ou expressão narcisista de um indivíduo, mas um processo maior e mais complexo de exercício do humano em todas as suas possibilidades.
Propõe uma literatura contra a literatura (contra o fetiche do livro, o uso estético da língua etc.) para transformá-la na própria ação, na própria vida, não mais simples representação: "Como manifestar de maneira literária personagens que não falam mais, e sim vivem?".
O mais fascinante desse projeto paradoxal é que ele só pode ser realizado dentro da própria literatura. Daí a imagem do túnel: "Essa agressão contra a linguagem literária, essa destruição de formas tradicionais tem a característica própria do túnel; destrói para construir". Às vezes, Cortázar lembra Artaud.
No fundo, ele tem a literatura na mais alta conta e, por isso, precisa defendê-la como manifestação que não se reduz ao oficialmente literário e livresco, mas explode numa ação poderosa, surrealista e existencialista, por buscar para além da realidade domesticada pelas convenções (literárias inclusive) uma outra realidade que abra ao homem a possibilidade de levar sua experiência poética às últimas consequências.
Sem citar, é como se o autor seguisse os passos de Nietzsche em "A Origem da Tragédia", ao propor a realização desse projeto na combinação entre o poético (o surrealismo, que faz lembrar o aspecto dionisíaco) e o enunciativo, ou narrativo (o existencialismo, que faz lembrar o aspecto apolíneo). É nesse encontro que ele vê uma literatura que, embora quebrando as convenções em nome de uma experiência mais profunda, possa expandi-la para além do indivíduo, para uma comunicação mais ampla. E é em "Ulisses", de James Joyce, que ele anuncia o surgimento dessa possibilidade.
Durante anos foi preciso combater a intromissão de programas políticos usurpando a verdadeira literatura. Hoje talvez seja o caso de fazer o movimento oposto. Não o de clamar por uma "literatura política", engajada, comprometida com valores programáticos, mas por uma literatura que tenha bases no mínimo reflexivas e cujos valores não possam ser reduzidos nem ao mercado, nem à mera vaidade dos autores. É diante de um ensaio como "Teoria do Túnel" que dá para sentir a falta que faz um pouco dessa inteligência.
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Livro: Julio Cortázar - Obra Crítica 1 Organização: Saúl Yurkievich Lançamento: Civilização Brasileira Quanto: R$ 17 (112 págs.)


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