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"FELICE FELICE"
Como o Ocidente não deixa de olhar seu umbigo
VINICIUS MOTA
EDITOR DE OPINIÃO
"Felice Felice" é mais um
bom filme sobre os ruídos
no diálogo entre Ocidente e
Oriente. E o termo "ruído", aqui,
ganha sentido amplo. "Não somos muito diferentes de vocês",
diz ao protagonista uma de suas
interlocutoras japonesas. "Vocês
fazem mais barulho", completa.
O ano é 1895, e o cenário, o Japão. Felice desembarca em Nagasaki a fim de reencontrar O-Kiku,
a nativa com quem casara e que
depois abandonara. Mas a mulher
já se foi. A partir daí, Felice empreende um périplo por alguns vilarejos. Passa por Yokohama e
chega, enfim, a Tóquio.
O protagonista é um duplo ficcional do fotógrafo Felice Beato,
de quem os dados precisos sobre
data e local de nascimento são
disputados por biógrafos (seria
britânico e teria vivido de 1834 a
1907). Beato celebrizou-se por registrar paisagens, populações e
guerras no extremo Oriente na segunda metade do século 19.
A cada parada, Felice encontra
um interlocutor especial, capaz de
lhe dar pistas do rastro de sua mulher. Esses diálogos pontuam todo o enredo. O interessante é o
efeito que essa caminhada exerce
sobre o próprio fotógrafo, sobre
suas convicções e especialmente
sobre suas lembranças.
Acostumado a ver o mundo
através das lentes de uma câmera,
o olho do ocidental agora está nu.
Felice vendeu sua máquina antes
de retornar ao Japão. Sem ela e
sem a mulher, é ele quem está exposto a esse vibrante país em
transformação, o qual não compreende, como não compreendia
a simplicidade de O-Kiku.
"Vocês japoneses só fazem o
que querem. É uma doença nacional", diz o fotógrafo a uma de suas
interlocutoras, uma prostituta sifilítica, alegoria viva (e morta) da
Yokohama das prostitutas e da sífilis, da exposição trágica ao voyeurismo do Ocidente.
Felice não se lembra mais do
rosto da mulher com quem casou.
Ela nunca se deixou fotografar.
Na única chapa em que aparece,
está em pé, perfilada, rosto irreconhecível. À sua volta, outras mulheres se expõem frontalmente,
sem problemas. O-Kiku escapa da
foto com a mesma indomada delicadeza que parte do país, o Japão
profundo, se utiliza para furtar-se
ao garrote da civilização gaijin.
"Felice Felice" fala do desencontro civilizatório. Fala especificamente da dificuldade ocidental de
exercer o pensamento e a linguagem para fora de seu umbigo. Dificuldade que, historicamente, gera barbárie. Meio século depois de
Felice desembarcar na úmida Nagasaki, caiu sobre a cidade uma
ruidosa bomba atômica.
Felice Felice
Felice Felice
Direção: Peter Delpeut
Produção: Holanda, 1998
Com: Johan Leysen, Toshie Ogura, Rina
Yasima
Quando: a partir de hoje no Top Cine
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