São Paulo, sexta-feira, 09 de fevereiro de 2001

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"FELICE FELICE"

Como o Ocidente não deixa de olhar seu umbigo

VINICIUS MOTA
EDITOR DE OPINIÃO

"Felice Felice" é mais um bom filme sobre os ruídos no diálogo entre Ocidente e Oriente. E o termo "ruído", aqui, ganha sentido amplo. "Não somos muito diferentes de vocês", diz ao protagonista uma de suas interlocutoras japonesas. "Vocês fazem mais barulho", completa.
O ano é 1895, e o cenário, o Japão. Felice desembarca em Nagasaki a fim de reencontrar O-Kiku, a nativa com quem casara e que depois abandonara. Mas a mulher já se foi. A partir daí, Felice empreende um périplo por alguns vilarejos. Passa por Yokohama e chega, enfim, a Tóquio.
O protagonista é um duplo ficcional do fotógrafo Felice Beato, de quem os dados precisos sobre data e local de nascimento são disputados por biógrafos (seria britânico e teria vivido de 1834 a 1907). Beato celebrizou-se por registrar paisagens, populações e guerras no extremo Oriente na segunda metade do século 19.
A cada parada, Felice encontra um interlocutor especial, capaz de lhe dar pistas do rastro de sua mulher. Esses diálogos pontuam todo o enredo. O interessante é o efeito que essa caminhada exerce sobre o próprio fotógrafo, sobre suas convicções e especialmente sobre suas lembranças.
Acostumado a ver o mundo através das lentes de uma câmera, o olho do ocidental agora está nu. Felice vendeu sua máquina antes de retornar ao Japão. Sem ela e sem a mulher, é ele quem está exposto a esse vibrante país em transformação, o qual não compreende, como não compreendia a simplicidade de O-Kiku.
"Vocês japoneses só fazem o que querem. É uma doença nacional", diz o fotógrafo a uma de suas interlocutoras, uma prostituta sifilítica, alegoria viva (e morta) da Yokohama das prostitutas e da sífilis, da exposição trágica ao voyeurismo do Ocidente.
Felice não se lembra mais do rosto da mulher com quem casou. Ela nunca se deixou fotografar. Na única chapa em que aparece, está em pé, perfilada, rosto irreconhecível. À sua volta, outras mulheres se expõem frontalmente, sem problemas. O-Kiku escapa da foto com a mesma indomada delicadeza que parte do país, o Japão profundo, se utiliza para furtar-se ao garrote da civilização gaijin.
"Felice Felice" fala do desencontro civilizatório. Fala especificamente da dificuldade ocidental de exercer o pensamento e a linguagem para fora de seu umbigo. Dificuldade que, historicamente, gera barbárie. Meio século depois de Felice desembarcar na úmida Nagasaki, caiu sobre a cidade uma ruidosa bomba atômica.


Felice Felice
Felice Felice

  
Direção: Peter Delpeut
Produção: Holanda, 1998
Com: Johan Leysen, Toshie Ogura, Rina Yasima
Quando: a partir de hoje no Top Cine




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