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MARCELO COELHO
O dia em que deuses e reis entram no túnel
Felizmente , dá para escapar da mesmice das imagens
que nos invadem nesta época do
ano: aqueles sorrisos imutáveis
dos destaques das escolas de samba, tentando equilibrar na cabeça
enfeites que imagino pesadíssimos, tal o esforço do pescoço; os
enjoativos cortejos que, vistos na
tela da TV, parecem estranhamente estáticos e confusos, como
a vitrine de uma loja de miçangas; a figura do repórter na rua,
de fones de ouvido, berrando para a câmera, sem ouvir nada e
sem ter nada a dizer... Visões diferentes do Carnaval podem ser encontradas na Pinacoteca do Estado, até dia 10 de abril.
"Entrudo", exposição de Rui
Mendes, mostra um desfile inusitado, ao mesmo tempo triunfal e
triste. O fotógrafo retratou os
sambistas voltando para casa, depois da apresentação no Sambódromo do Rio, ainda cobertos
com as fantasias e adereços dourados, lembrando esplendores de
deuses mexicanos no escuro. Até
aí, nada de especial: é também
um lugar-comum da fotografia
carnavalesca a idéia do fim da folia, no estilo "eis o primeiro gari
que se encontra com a última
passista no raiar da madrugada..." etc.
A novidade, a surpresa, está no
lugar em que a foto foi tirada: o
túnel Frei Caneca, deserto àquela
hora da noite. Três ou quatro carnavalescos, a razoável distância
um do outro, andam na estreita
passagem reservada aos pedestres
dentro do túnel, a caminho (imagino) do subúrbio. Várias coisas
se concentram nessa imagem.
De um lado, fortalece-se um
pouco o sentido, digamos, subversivo do Carnaval. Ao contrário do
desfile no Sambódromo, que em
última instância consiste num
evento oficializado, com hora
marcada, regulamento e endereço fixo, o que surge na foto é a
ocupação imprevista de um espaço não-autorizado, fazendo do
Carnaval aquilo que ele deve de
fato ser: algo capaz de transfigurar o cotidiano, dissolvendo referências fixas. O lugar -feiíssimo,
coberto de sujeira e pichações-
adquire na foto o ar de uma nova
passarela, e o corrimão reservado
aos pedestres se ilumina de tons
dourados também.
Só que os carnavalescos estão
longe de ser tão "transgressivos"
assim, e o sentido da foto se inverte: afinal de contas, eles se confinam ao espaço dos pedestres, sem
invadir a pista dos automóveis.
Não há símbolo mais claro da dificuldade enfrentada pelos pedestres em cidades como Rio e São
Paulo, aliás, do que esses condutos, estreitos como uretras, por
que são às vezes obrigados a percorrer.
O que Rui Mendes retrata, afinal, é uma volta à casa, não uma
comemoração dionisíaca; como
se tudo tivesse sido mais um dia
de trabalho -ainda que bastante diferente dos habituais. Uma
descida aos infernos, talvez? Podemos imaginar que os reis e deuses do desfile retornam à obscuridade -mas nesse retorno, pelo
menos, ainda sacralizam os lugares por onde passam.
O título da exposição de Rui
Mendes, "Entrudo", tem algo de
quase trocadilhesco, sugerindo
"entrar" e "túnel", além de remeter, pelo uso da sua denominação
antiga, aos tempos em que o Carnaval era mesmo mais tumultuado e inconformista. A etimologia
de "entrudo", em todo caso, explica mais um pouco a foto: a palavra vem de "intróito", introdução, entrada, referindo-se ao começo da Quaresma, período de
penitência e luto depois das festas.
Com "Giracorpogira", também
na Pinacoteca, o fotógrafo Jacques Faing faz uma interpretação
bem mais leve, quase que desmaterializada, e até "desumanizada", do Carnaval. Não há rostos
nem aglomerações frenéticas.
Faing concentrou-se nas saias das
baianas e porta-bandeiras, girando acima do chão. Dito assim, parece muito prosaico, mas o efeito é
de extrema delicadeza; somos
tentados a nos aproximar bastante das fotografias para verificar se
o autor não acrescentou nenhuma pincelada para embelezar
ainda mais o que as lentes registraram. Todos conhecem aquelas
fotos de avenidas à noite, em que
os faróis dos carros acabam parecendo, graças à superexposição
da câmera, fios brilhantes, amarelos, brancos e vermelhos, contrastando com o asfalto. Imagino
que Jacques Faing tenha utilizado um processo semelhante. As
saias das sambistas se esfiapam,
se desgrenham, se dissolvem, com
o ouro dos bordados sobre o tecido azul-claro, branco ou verde-e-rosa, transformado num fluxo de
luz.
A impressão que tenho do Carnaval como espetáculo exasperado, no fundo meio doloroso e paquidérmico, desapareceu graças
às fotos de Faing; tudo se tornava
suave como um pastel de Degas
ou Fragonard. De certo modo,
também nessa exposição se atingia aquilo que o Carnaval quer,
mas não consegue realizar totalmente: uma transfiguração da
realidade, em que um processo de
encantamento ritual, giratório,
fizesse tudo voar pelos ares, sem
explosão, mas num milagre de leveza. Foi só sair da Pinacoteca,
entretanto, para que no Jardim
da Luz -tão bonito, apesar de
tudo- uma população tristíssima, paupérrima, sem Carnaval
nem fotógrafo que resolva, se fizesse visível no seu lugar de sempre.
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