São Paulo, terça-feira, 09 de março de 2004

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FERNANDO BONASSI

A revolta dos bichos

Senhores botânicos, zoólogos, nutricionistas, peritos e demais tiras especialistas contratados a soldo desse Estado de coisas! Esqueçais vossos laudos, inquéritos e depoimentos sem sentido!
Nós somos os assassinos!
Sim! Nós, os ratos subterrâneos, viemos ao público da página dos fundos deste jornal para informar em segredo de injustiça que somos nós a oferecer os petiscos envenenados aos inocentes enjaulados em vosso zoológico!
Sim! Nós! Os ratos dos esgotos! A mais pobre representação de vossas ricas metáforas do inferno, expostos ao desprezo e ao escárnio dos modernos e demonizados nas histórias infantis de auto-ajuda!
Somos sim assassinos estúpidos, como em todos os vossos exemplos históricos! Apenas não nos vestimos para morrer, que essa veleidade fardada não temos. Somos bichos, não bicheiros; nascemos pelados e ficamos peludos, desorganizados e usurpadores, o que não é próprio do comportamento desses vossos soldados a matarem-se mutuamente nos becos e escadões da selva da cidade, não é mesmo?
Nós pelo menos assumimos: o genocídio suicida que perpetramos não tem mais sentido que as vossas festas, as vossas guerras, as vossas pazes...
Nós, que nos tornamos resistentes às vossas armas químicas e armadilhas degoladoras, ainda somos obrigados a engolir esse monte de plástico inorgânico, ar chumbado e água oleosa em nossos parcos mananciais!?
Somos mal e porcamente acolhidos nas valetas e nos tubos das esquinas, essa que é a verdade. Somos viscerais, causamos disenteria. Também podemos ser venais, transmitindo doenças mortais a conta-gotas e seringas revoltadas pelo uso, expondo as feridas da juventude bonita e desempregada. Nossa beleza é de outra espécie, nossa inteligência é de outra estirpe no reino animal. Não vos esqueçais: este é "o vosso" habitat natural! A propósito, aprendemos a colher o melhor do pior, um salário mínimo que muitos de vós não tendes no momento!
Percorremos cotidianamente essas tubulações e, quer queiramos, quer não, conhecemos de perto a boa parte da matéria de que sois feitos...
Por essas e outras perguntamos: quem é mais sujo do que nós?
Nós matamos vossos animais presidiários sim, pois agora eles estão livres de vossos horários estritos, vossos acenos esdrúxulos, grupos escolares gritalhões, guloseimas com colesterol ruim e notícias de chacinas exibidas na bandeja!
Dá nojo mesmo! Nós somos os maus elementos dos subterrâneos poluídos, mas, se estamos tão por baixo, algo tendes a ver com isso: se pudéssemos viver sossegados sobre a terra, alguém acredita que nos meteríamos com tanta coisa desagradável?
Não foi questão de gosto. Nos deram opção? Qual não fosse "sair da frente"?
Saímos. Saíamos ou morríamos! E, se a vida tem valor para todos os outros suínos, porque as de nossa turminha hereditária não têm poder?
Nós nos refugiamos neste pior lugar, mas não venham chamar de castigo eterno o que vós não conheceis de verdade e que, quando conheceis mesmo as qualidades, já estareis que não podereis voltar, se é que tal inferno existe; o que, aliás, também não sabemos irracionalmente informar.
Vós, agora evoluídos nos pós das drogas de tantas guerras e nas quedas de tantos muros (que podem voltar a ser erguidos a qualquer momento) não lembrais mais pois, embora tenhais memória, não pagais o precinho dos provedores para acessá-la e conferi-la em toda a sua violência nas fotografias da internet. Confere?
Vós não puxais e nem primais pela lembrança, mas devíeis fazer um esforcinho pequenino, à vossa altura que fosse! Pois nós, os matadores emporcalhados pelo sangue misturado, aqueles que vos incomodam como imigrantes clandestinos de pêlo malhado; sim, nós, os ratos dos porões escancarados e dos porta-malas falsificados bem que tentamos nos tornar animais de vossa mais cara estimação: fomos indiferentes como vossos gatos metidos, servis como esses cachorros meio mortos que chutais nos pisos das cozinhas higiênicas; repetimos tudo o que vos agradava como papagaios traiçoeiros... e nada.
Mas nunca fomos trapaceiros. Coerentes com a nossa baixeza danosa, espalhamos a morte nas moléstias! Aliás preferimos essas evidentes no corpo do que aquelas do espírito, escondidas por ternos e salários dos que se esquecem de deitar, dando ordens de execução em massa e sermões sanguinários em vossos nomes.
Muito cuidado! Esses macacos adolescentes, elefantes gulosos e porcos-espinhos não passam de bodes expiatórios!
Que nos perdoem do assombro os mais crentes nisso tudo: tudo isso parece incrível, mas é tão verdade como qualquer possibilidade de um meteoro despreocupado nos atingir a todos, acabando para sempre com as vossas grandes idéias sobre a natureza humana.
PS.: os termos constantes desse documento não correspondem a todas as más intenções dos seus autores.


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