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FERNANDO BONASSI
A revolta dos bichos
Senhores botânicos, zoólogos, nutricionistas, peritos e
demais tiras especialistas contratados a soldo desse Estado de coisas! Esqueçais vossos laudos, inquéritos e depoimentos sem sentido!
Nós somos os assassinos!
Sim! Nós, os ratos subterrâneos,
viemos ao público da página dos
fundos deste jornal para informar
em segredo de injustiça que somos nós a oferecer os petiscos envenenados aos inocentes enjaulados em vosso zoológico!
Sim! Nós! Os ratos dos esgotos! A
mais pobre representação de vossas ricas metáforas do inferno, expostos ao desprezo e ao escárnio
dos modernos e demonizados nas
histórias infantis de auto-ajuda!
Somos sim assassinos estúpidos,
como em todos os vossos exemplos históricos! Apenas não nos
vestimos para morrer, que essa
veleidade fardada não temos. Somos bichos, não bicheiros; nascemos pelados e ficamos peludos,
desorganizados e usurpadores, o
que não é próprio do comportamento desses vossos soldados a
matarem-se mutuamente nos becos e escadões da selva da cidade,
não é mesmo?
Nós pelo menos assumimos: o
genocídio suicida que perpetramos não tem mais sentido que as
vossas festas, as vossas guerras, as
vossas pazes...
Nós, que nos tornamos resistentes às vossas armas químicas e armadilhas degoladoras, ainda somos obrigados a engolir esse
monte de plástico inorgânico, ar
chumbado e água oleosa em nossos parcos mananciais!?
Somos mal e porcamente acolhidos nas valetas e nos tubos das
esquinas, essa que é a verdade.
Somos viscerais, causamos disenteria. Também podemos ser venais, transmitindo doenças mortais a conta-gotas e seringas revoltadas pelo uso, expondo as feridas da juventude bonita e desempregada. Nossa beleza é de
outra espécie, nossa inteligência é
de outra estirpe no reino animal.
Não vos esqueçais: este é "o vosso"
habitat natural! A propósito,
aprendemos a colher o melhor do
pior, um salário mínimo que
muitos de vós não tendes no momento!
Percorremos cotidianamente
essas tubulações e, quer queiramos, quer não, conhecemos de
perto a boa parte da matéria de
que sois feitos...
Por essas e outras perguntamos:
quem é mais sujo do que nós?
Nós matamos vossos animais
presidiários sim, pois agora eles
estão livres de vossos horários estritos, vossos acenos esdrúxulos,
grupos escolares gritalhões, guloseimas com colesterol ruim e notícias de chacinas exibidas na bandeja!
Dá nojo mesmo! Nós somos os
maus elementos dos subterrâneos
poluídos, mas, se estamos tão por
baixo, algo tendes a ver com isso:
se pudéssemos viver sossegados
sobre a terra, alguém acredita
que nos meteríamos com tanta
coisa desagradável?
Não foi questão de gosto. Nos
deram opção? Qual não fosse
"sair da frente"?
Saímos. Saíamos ou morríamos! E, se a vida tem valor para
todos os outros suínos, porque as
de nossa turminha hereditária
não têm poder?
Nós nos refugiamos neste pior
lugar, mas não venham chamar
de castigo eterno o que vós não
conheceis de verdade e que, quando conheceis mesmo as qualidades, já estareis que não podereis
voltar, se é que tal inferno existe; o
que, aliás, também não sabemos
irracionalmente informar.
Vós, agora evoluídos nos pós
das drogas de tantas guerras e nas
quedas de tantos muros (que podem voltar a ser erguidos a qualquer momento) não lembrais
mais pois, embora tenhais memória, não pagais o precinho dos
provedores para acessá-la e conferi-la em toda a sua violência
nas fotografias da internet. Confere?
Vós não puxais e nem primais
pela lembrança, mas devíeis fazer
um esforcinho pequenino, à vossa
altura que fosse! Pois nós, os matadores emporcalhados pelo sangue misturado, aqueles que vos
incomodam como imigrantes
clandestinos de pêlo malhado;
sim, nós, os ratos dos porões escancarados e dos porta-malas falsificados bem que tentamos nos
tornar animais de vossa mais cara estimação: fomos indiferentes
como vossos gatos metidos, servis
como esses cachorros meio mortos
que chutais nos pisos das cozinhas higiênicas; repetimos tudo o
que vos agradava como papagaios traiçoeiros... e nada.
Mas nunca fomos trapaceiros.
Coerentes com a nossa baixeza
danosa, espalhamos a morte nas
moléstias! Aliás preferimos essas
evidentes no corpo do que aquelas do espírito, escondidas por ternos e salários dos que se esquecem
de deitar, dando ordens de execução em massa e sermões sanguinários em vossos nomes.
Muito cuidado! Esses macacos
adolescentes, elefantes gulosos e
porcos-espinhos não passam de
bodes expiatórios!
Que nos perdoem do assombro
os mais crentes nisso tudo: tudo
isso parece incrível, mas é tão verdade como qualquer possibilidade de um meteoro despreocupado
nos atingir a todos, acabando para sempre com as vossas grandes
idéias sobre a natureza humana.
PS.: os termos constantes desse
documento não correspondem a
todas as más intenções dos seus
autores.
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