São Paulo, quarta-feira, 09 de março de 2005

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MARCELO COELHO

LSD, vômito e tumultos à beira-mar

"Milhares de pessoas estão presas em cadeias desta vasta democracia por causa de maconha, e o mundo em que temos de viver é controlado por um bandido estúpido do Texas. Um mentiroso degenerado, com a família mais feia da cristandade... E a Califórnia, "o Estado mais progressista", elege um governador saído direto de uma pintura de George Grosz, uma aberração política em qualquer sentido, exceto na política californiana..."
Esse parágrafo foi escrito em 1967. O "bandido estúpido do Texas" não é Bush, e sim Lyndon Johnson. O governador saído de um quadro do expressionismo alemão não é Schwarzenegger, e sim Ronald Reagan. Não há milhares, e sim milhões de pessoas presas por maconha nos Estados Unidos, e o autor do texto, o jornalista Hunter Thompson, suicidou-se com um tiro de revólver, aos 67 anos, há cerca de 15 dias.
Até saírem os primeiros artigos sobre sua morte, eu não sabia muita coisa sobre o "Dr. Thompson" -como era conhecido entre seus admiradores. Tinha visto que dois livros dele estavam sendo publicados no Brasil pela editora Conrad: "Hell's Angels - Medo e Delírio sobre Duas Rodas", sobre gangues de motoqueiros nos Estados Unidos, e "A Grande Caçada aos Tubarões", coletânea de reportagens escritas entre 1962 e 1978.
Hunter Thompson celebrizou-se como criador do "jornalismo gonzo" -uma versão endoidecida e anárquica do "new journalism" de Tom Wolfe e Truman Capote. A regra básica, e desconfio que única, da boa reportagem "gonzo" é que seu autor esteja completamente intoxicado de LSD, anfetaminas, coca, maconha ou álcool no momento de realizá-la.
"A Grande Caçada aos Tubarões" inclui, por exemplo, um longo texto sobre o Derby de Kentucky, escrito em 1970. Os freqüentadores daquele evento são descritos como um bando de brancos degenerados, bêbados e disformes, "resultado inevitável de muitos cruzamentos entre parentes numa cultura fechada e ignorante". Hunter Thompson expressa sua repugnância com relação a eles bebendo mais do que todos juntos; o texto acusatório é também um auto-retrato -e uma confissão.
Logo perdemos a noção do que é verdade e do que é mentira. Num jantar, parece que espalhou spray de pimenta na cara dos convivas; depois, quase passou por cima de um Fusca cheio de freiras ao dirigir a toda velocidade em direção ao hipódromo. Sobre as corridas, tem pouco a dizer, orgulhando-se mesmo de ter perdido um acontecimento importante.
"Momentos depois do término do páreo", diz, "houve um tumulto no estacionamento. Pessoas foram esmurradas e pisoteadas, trombadinhas agiram, crianças foram perdidas, garrafas arremessadas. Mas perdemos tudo isso, tendo voltado para o camarote de imprensa para alguns drinques pós-páreo". O tom da frase -"crianças foram perdidas, garrafas arremessadas"- lembra a indiferença flaubertiana; a apologia da bebedeira vem com certeza dos escritores americanos dos anos 20; o espírito generalizado de insulto e delinqüência juvenil é típico das décadas de 50 e 60.
Do Derby do Kentucky, passamos a um campeonato de pesca esportiva no México. Mas o roteiro não muda: Thompson está novamente se indispondo com os patrocinadores e convivas, destruindo carros e quartos de hotel, driblando a segurança dos aeroportos e fugindo pela estrada encharcado de vômito, bebida e anfetaminas.
Com o passar do tempo, os fatos parecem importar cada vez menos para o jornalista. Sua cobertura do escândalo de Watergate -longamente reproduzida no livro da Conrad- é um divertido destampatório: nas passagens mais amenas do texto, Richard Nixon é chamado de Dick Vigarista. Mas o leitor brasileiro fica perdido diante das inúmeras referências a personalidades e circunstâncias específicas, e o propósito da reportagem não é, vemos logo, informar ninguém.
Thompson foi dos primeiros a descrever o fenômeno hippie, num texto de 67, incluído na coletânea. Sobre essa época, ele escreveu mais tarde: "A loucura estava em qualquer lugar, a qualquer hora... Havia uma fantástica sensação, comum a todos, de que aquilo que estávamos fazendo, fosse lá o que fosse, era certo... De que estávamos ganhando... De que estávamos na crista de uma onda enorme e linda... Agora, menos de cinco anos depois, você pode subir um morro íngreme em Las Vegas e olhar para o oeste. Com o tipo certo de olhos, você quase consegue enxergar a marca da maré -aquele lugar onde a onda finalmente quebrou e se retraiu".
No mundo de Bush e Bin Laden, essa onda parece continuar se retraindo; talvez tenha se perdido totalmente de vista.
Termino com os versos de um poeta bastante "careta", o vitoriano Matthew Arnold (1822-1888). Ele contempla, numa noite calma, a praia de Dover. Ouve o ruído áspero dos pedregulhos que as ondas arrastam e jogam de volta, numa cadência triste. Sófocles, diz ele, ouviu essa cadência no mar Egeu muito tempo atrás; evocou-lhe o turvo ir-e-vir da miséria humana. "O oceano da fé", especula Arnold, "já teve sua maré montante", mas agora só se ouve "seu melancólico e longo marulhar de retirada, rumo a vastas e remotas praias, aos desolados areais do mundo".
O que resta? Arnold conclui propondo à amada um pacto de fidelidade ("Let us be true to one another"). Pois estamos no mundo "como numa planície que escurece, tomada por sinais confusos de rixa e fuga, e onde, à noite, Exércitos ignorantes se batem".
"Let us be true to one another": esse é um pacto que Hunter Thompson parece ter celebrado consigo mesmo. Por estranho que pareça, seu compromisso com a verdade não tinha muito a ver com os fatos -mas devia ser bem grande.


@ - coelhofsp@uol.com.br

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