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MARCELO COELHO
LSD, vômito e tumultos à beira-mar
"Milhares de pessoas estão presas em cadeias
desta vasta democracia por causa
de maconha, e o mundo em que
temos de viver é controlado por
um bandido estúpido do Texas.
Um mentiroso degenerado, com a
família mais feia da cristandade...
E a Califórnia, "o Estado mais progressista", elege um governador
saído direto de uma pintura de
George Grosz, uma aberração política em qualquer sentido, exceto
na política californiana..."
Esse parágrafo foi escrito em
1967. O "bandido estúpido do Texas" não é Bush, e sim Lyndon
Johnson. O governador saído de
um quadro do expressionismo
alemão não é Schwarzenegger, e
sim Ronald Reagan. Não há milhares, e sim milhões de pessoas
presas por maconha nos Estados
Unidos, e o autor do texto, o jornalista Hunter Thompson, suicidou-se com um tiro de revólver,
aos 67 anos, há cerca de 15 dias.
Até saírem os primeiros artigos
sobre sua morte, eu não sabia
muita coisa sobre o "Dr. Thompson" -como era conhecido entre
seus admiradores. Tinha visto que
dois livros dele estavam sendo publicados no Brasil pela editora
Conrad: "Hell's Angels - Medo e
Delírio sobre Duas Rodas", sobre
gangues de motoqueiros nos Estados Unidos, e "A Grande Caçada
aos Tubarões", coletânea de reportagens escritas entre 1962 e
1978.
Hunter Thompson celebrizou-se
como criador do "jornalismo gonzo" -uma versão endoidecida e
anárquica do "new journalism"
de Tom Wolfe e Truman Capote.
A regra básica, e desconfio que
única, da boa reportagem "gonzo" é que seu autor esteja completamente intoxicado de LSD, anfetaminas, coca, maconha ou álcool
no momento de realizá-la.
"A Grande Caçada aos Tubarões" inclui, por exemplo, um longo texto sobre o Derby de Kentucky, escrito em 1970. Os freqüentadores daquele evento são descritos como um bando de brancos
degenerados, bêbados e disformes,
"resultado inevitável de muitos
cruzamentos entre parentes numa cultura fechada e ignorante".
Hunter Thompson expressa sua
repugnância com relação a eles
bebendo mais do que todos juntos; o texto acusatório é também
um auto-retrato -e uma confissão.
Logo perdemos a noção do que é
verdade e do que é mentira. Num
jantar, parece que espalhou spray
de pimenta na cara dos convivas;
depois, quase passou por cima de
um Fusca cheio de freiras ao dirigir a toda velocidade em direção
ao hipódromo. Sobre as corridas,
tem pouco a dizer, orgulhando-se
mesmo de ter perdido um acontecimento importante.
"Momentos depois do término
do páreo", diz, "houve um tumulto no estacionamento. Pessoas foram esmurradas e pisoteadas,
trombadinhas agiram, crianças
foram perdidas, garrafas arremessadas. Mas perdemos tudo isso, tendo voltado para o camarote
de imprensa para alguns drinques
pós-páreo". O tom da frase
-"crianças foram perdidas, garrafas arremessadas"- lembra a
indiferença flaubertiana; a apologia da bebedeira vem com certeza
dos escritores americanos dos
anos 20; o espírito generalizado de
insulto e delinqüência juvenil é típico das décadas de 50 e 60.
Do Derby do Kentucky, passamos a um campeonato de pesca
esportiva no México. Mas o roteiro não muda: Thompson está novamente se indispondo com os patrocinadores e convivas, destruindo carros e quartos de hotel, driblando a segurança dos aeroportos e fugindo pela estrada encharcado de vômito, bebida e anfetaminas.
Com o passar do tempo, os fatos
parecem importar cada vez menos para o jornalista. Sua cobertura do escândalo de Watergate
-longamente reproduzida no livro da Conrad- é um divertido
destampatório: nas passagens
mais amenas do texto, Richard
Nixon é chamado de Dick Vigarista. Mas o leitor brasileiro fica
perdido diante das inúmeras referências a personalidades e circunstâncias específicas, e o propósito da reportagem não é, vemos
logo, informar ninguém.
Thompson foi dos primeiros a
descrever o fenômeno hippie, num
texto de 67, incluído na coletânea.
Sobre essa época, ele escreveu
mais tarde: "A loucura estava em
qualquer lugar, a qualquer hora...
Havia uma fantástica sensação,
comum a todos, de que aquilo que
estávamos fazendo, fosse lá o que
fosse, era certo... De que estávamos ganhando... De que estávamos na crista de uma onda enorme e linda... Agora, menos de cinco anos depois, você pode subir
um morro íngreme em Las Vegas
e olhar para o oeste. Com o tipo
certo de olhos, você quase consegue enxergar a marca da maré
-aquele lugar onde a onda finalmente quebrou e se retraiu".
No mundo de Bush e Bin Laden,
essa onda parece continuar se retraindo; talvez tenha se perdido
totalmente de vista.
Termino com os versos de um
poeta bastante "careta", o vitoriano Matthew Arnold (1822-1888). Ele contempla, numa noite
calma, a praia de Dover. Ouve o
ruído áspero dos pedregulhos que
as ondas arrastam e jogam de
volta, numa cadência triste. Sófocles, diz ele, ouviu essa cadência
no mar Egeu muito tempo atrás;
evocou-lhe o turvo ir-e-vir da miséria humana. "O oceano da fé",
especula Arnold, "já teve sua maré montante", mas agora só se ouve "seu melancólico e longo marulhar de retirada, rumo a vastas
e remotas praias, aos desolados
areais do mundo".
O que resta? Arnold conclui
propondo à amada um pacto de
fidelidade ("Let us be true to one
another"). Pois estamos no mundo "como numa planície que escurece, tomada por sinais confusos de rixa e fuga, e onde, à noite,
Exércitos ignorantes se batem".
"Let us be true to one another":
esse é um pacto que Hunter
Thompson parece ter celebrado
consigo mesmo. Por estranho que
pareça, seu compromisso com a
verdade não tinha muito a ver
com os fatos -mas devia ser bem
grande.
@ - coelhofsp@uol.com.br
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