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CARLOS HEITOR CONY
Biografia de um sucesso
Sentiu cheiros dos quais se esquecera e que eram mais fortes do que o mofo acumulado
NO DIA em que completou cinco anos, berrou 12 horas seguidas, querendo a maçaneta da porta do quarto da mãe -velha
maçaneta de cristal, quando a luz
batia em cima ficava cheia de cores,
era o fascínio, o principal brinquedo
de sua primeira infância.
Evidente que ninguém lhe deu
atenção, ou melhor, deram-lhe toda
a atenção, menos a maçaneta de
cristal que parecia iluminada por
um arco-íris.
Ganhou muitos brinquedos, inclusive um cavalinho de pau, um velocípede e um quadro-negro com giz
e apagador.
No dia em que fez dez anos, pediu
e ganhou uma bicicleta, mas não deu
muita importância ao presente. Preferia andar na bicicleta de seu irmão
mais velho e, meses depois, criou
um problema na rua quando trocou
com o garoto vizinho sua bicicleta
nova por uma coleção de bolas de
gude e um pião.
Os pais de ambos os garotos entraram na jogada, desfizeram a troca,
mesmo assim a vergonha foi mútua:
eram homens sérios, de respeito, comerciantes bem-sucedidos, sabiam
que não se desfaz um negócio firmado livremente pelas partes, enfim,
foi um problema, dos muitos que ele
criou em sua infância.
Aos 15 anos, não ganhou nada: estava no internato e, como seu aniversário coincidia vagamente com a
Semana Santa, ganhou antecipadamente um ovo de Páscoa, que ele jogou fora, num matinho que havia lá
para os fundos do recreio.
Mesmo assim, lá pelo início da
noite, ele foi para um canto e chorou
de raiva: um dia se vingaria de tudo e
aí o mundo tremeria a seus pés.
Ao fazer 20 anos ganhou um enxoval de noivo: roupas de cama, móveis, casa e um emprego na companhia do pai, pois a noiva era pobre e a
família dele precisava torná-lo um
executivo às pressas, pois o irmão
mais velho dera uma de louco, trocando as pompas deste mundo por
uns trapos coloridos, uma cabeça
raspada e uns hinos esquisitos, tornando-se um hare krishna antecipado da onda que viria mais tarde, nos
anos 70.
Pois em meados dos anos 50 o irmão abandonou a família e foi para o
Tibete, viver em paz com seu karma
ou entidade equivalente.
Para compensar o mau exemplo
do irmão mais velho, aos 25 anos ganhou o título de diretor vice-presidente da empresa de seu pai e uma
filha. Ganhou também um cadillac
rabo-de-peixe, importado; na época
não havia similares nacionais.
Aos 30 anos, ganhou outro filho e
o título de "homem de visão" do ano.
Aos 35 anos, não ganhou nada pois
estava numa reunião internacional,
em Genebra, debatendo com empresários do mundo ocidental as
causas do recesso industrial provocado pela queda da libra e pela maxidesvalorização do marco alemão.
Mesmo assim, no dia seguinte -o
atraso foi atribuído aos péssimos
serviços dos postalistas suíços- recebeu telegramas da família e dos
puxa-sacos da empresa da qual já
era o segundo em importância.
As 40 anos, ganhou a presidência
de todas as empresas do grupo da família e um filho bastardo (ele tivera
um caso com uma funcionária de
terceiro escalão), e o governo de Minas Gerais concedeu-lhe a Medalha
da Inconfidência.
Aos 45, quase não ia ganhando nada, mas na última hora ganhou um
jantar de surpresa, preparado por
todos os puxa-sacos de suas empresas, os mesmos dos telegramas de
cinco anos passados, acrescidos por
novos de seus novos negócios.
Aos 50 anos, recebeu uma urna de
bronze com as cinzas de seu irmão
mais velho que morrera no Tibete
depois de uma greve de fome em nome da paz mundial.
Aos 55 anos, depois de complicada
demanda familiar, ganhou a velha
casa onde nascera e passara a infância e que estava abandonada.
Na manhã seguinte ao dia em que
recebeu a escritura definitiva da
posse, foi sozinho para lá, abriu a
porta principal, pisou em ratazanas
mortas e espalhadas pelo assoalho.
Sentiu cheiros dos quais se esquecera e que eram mais fortes do que o
mofo acumulado pelo abandono e
pelas ratazanas mortas.
Não abriu uma janela. Foi direto
ao quarto de seus pais; apodrecida
em suas ferragens, a maçaneta de
cristal foi fácil de ser retirada. Não
havia sol, mas ele sabia que dentro
dela havia um arco-íris iluminado e
agora seu.
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