São Paulo, domingo, 09 de março de 2008

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Teatro vai ao erudito

Platéia também tem solistas da tosse

SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Quando há concerto no parque, o que atrai o cidadão, o sol ou a música? Nada melhor que um belo domingo, como o último, para testar: estaria lotado o Municipal, à sombra, só com o apelo de Wagner, Tchaikovski e da pianista russa Valentina Igoshina?
A resposta foi imediata: quase que o crítico improvisado fica de fora, chegando meia hora antes na enorme e democrática fila da cultura a bom preço. Predominava o bom humor cordato, como se o encontro com a Sinfônica Municipal fosse um almoço na casa da avó, que, mesmo sem a sofisticação da Sala São Paulo, acolhe todos os parentes de todas as classes com sua melhor louça.
Informal, mas nunca vulgar, o ritual envolve acenos discretos de violinistas à família na platéia, um luxo quase irônico no figurino, que inclui o lenço de pirata na cabeça de um oboísta, e a prontidão dos percussionistas, de pé ao fundo como garçons solícitos. O segundo violino afina os colegas, o primeiro é aplaudido ao entrar, e todos levantam à chegada do maestro (que inveja que um diretor de teatro sente disso!).
Após saborear o silêncio, José Maria Florêncio bate as asas da casaca e ergue todos ao céu do prelúdio de "Lohengrin", de Wagner, uma rápida entrada para o prato principal: precedida pelo piano, a convidada ilustre. Igoshina nem dá trela à sua beleza de superstar. Simpática e eficiente como uma hostess, faz a receita correta de uma rapsódia de Rachmaninov na ponta dos dedos, cantarolando como a Branca de Neve enquanto trabalha. Cobre-se de aplausos, e é intervalo.
Depois do caos do champanhe na cantina, a sobremesa: uma infalível "Sinfonia nº 4" de Tchaikovski, adoçada nos sopros e flambada nos metais, na qual Florêncio é protagonista.
Braços cruzados, é mestre severo entre alunos aplicados em prova de pizzicato (cordas pinçadas com os dedos), para em seguida cavalgar à frente das tropas, grandiloqüência gestual que põe à prova o pacto de silêncio entre os movimentos.
Ninguém faz feio; tirando os inevitáveis solistas da tosse, a platéia é bem formada, e o crítico de teatro se dá conta de que sequer foi preciso pedir o desligamento dos celulares. Decidi: já que nunca irei correr no parque, vou me aperfeiçoar nas vesperais do Municipal.


SERGIO SALVIA COELHO é crítico de teatro da Ilustrada e gosta de música erudita, mas não ao ponto de ir a um concerto.


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