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Teatro vai ao erudito
Platéia também tem solistas da tosse
SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
Quando há concerto no
parque, o que atrai o cidadão, o sol ou a música? Nada melhor que um belo
domingo, como o último, para
testar: estaria lotado o Municipal, à sombra, só com o apelo de
Wagner, Tchaikovski e da pianista russa Valentina Igoshina?
A resposta foi imediata: quase que o crítico improvisado fica de fora, chegando meia hora
antes na enorme e democrática
fila da cultura a bom preço. Predominava o bom humor cordato, como se o encontro com a
Sinfônica Municipal fosse um
almoço na casa da avó, que,
mesmo sem a sofisticação da
Sala São Paulo, acolhe todos os
parentes de todas as classes
com sua melhor louça.
Informal, mas nunca vulgar,
o ritual envolve acenos discretos de violinistas à família na
platéia, um luxo quase irônico
no figurino, que inclui o lenço
de pirata na cabeça de um
oboísta, e a prontidão dos percussionistas, de pé ao fundo como garçons solícitos. O segundo violino afina os colegas, o
primeiro é aplaudido ao entrar,
e todos levantam à chegada do
maestro (que inveja que um diretor de teatro sente disso!).
Após saborear o silêncio, José Maria Florêncio bate as asas
da casaca e ergue todos ao céu
do prelúdio de "Lohengrin", de
Wagner, uma rápida entrada
para o prato principal: precedida pelo piano, a convidada ilustre. Igoshina nem dá trela à sua
beleza de superstar. Simpática
e eficiente como uma hostess,
faz a receita correta de uma
rapsódia de Rachmaninov na
ponta dos dedos, cantarolando
como a Branca de Neve enquanto trabalha. Cobre-se de
aplausos, e é intervalo.
Depois do caos do champanhe na cantina, a sobremesa:
uma infalível "Sinfonia nº 4" de
Tchaikovski, adoçada nos sopros e flambada nos metais, na
qual Florêncio é protagonista.
Braços cruzados, é mestre severo entre alunos aplicados em
prova de pizzicato (cordas pinçadas com os dedos), para em
seguida cavalgar à frente das
tropas, grandiloqüência gestual
que põe à prova o pacto de silêncio entre os movimentos.
Ninguém faz feio; tirando os
inevitáveis solistas da tosse, a
platéia é bem formada, e o crítico de teatro se dá conta de que
sequer foi preciso pedir o desligamento dos celulares. Decidi:
já que nunca irei correr no parque, vou me aperfeiçoar nas
vesperais do Municipal.
SERGIO SALVIA COELHO é crítico de teatro da
Ilustrada e gosta de música erudita, mas não ao
ponto de ir a um concerto.
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